sábado, outubro 28, 2006

IMPRESSÕES DE VIAGEM (*)

Aos filhos Ana Paula e Paulo Henrique. 

A tônica da viagem, que começa em Paris, é a garantia de tranqüilidade em todo o transcurso do roteiro turístico previamente estabelecido. Nenhum estorvo em qualquer circunstância, só a curiosa e satisfatória escalada das surpresas. Sabemos que no plano das relações internacionais, a política francesa é lúcida e saudável, não entra em enrascadas como as defrontadas por países visados pelos humilhados e ofendidos terroristas vingativos. Paira no ar parisiense o sentido da autonomia, da vigência do sentimento estético, do zelo e do amor aos bens culturais consagrados e jamais banalizados ao longo do tempo. Não se vê ninguém limpando as vias públicas, que estão sempre limpíssimas. As edificações não mancham nem barram a paisagem, são imóveis dinâmicos, por assim dizer, graças a impressão de renovada perenidade que dão. De toda a decoração paisagística flui o magnetismo – e assim ninguém cansa de olhar tanta beleza, de admirar tantos ícones emblemáticos, devidamente tombados e preservados como patrimônio universal – e falamos não apenas da Torre Eifel, do Museu do Louvre, do Palácio de Versailles, mas também dos inúmeros boulervares, dos campos elíseos, das margens, águas e pontes do Sena. Sentimos profundamente a certeza de que a arte produzida pela aristocracia do passado encontra agora a aceitação e o encantamento das classes populares (uma prova que no fundo somos todos aristocráticos?). Não presenciamos nenhum ato de violência de ação ou de situação nos logradouros públicos, protegidos por um certamente rígido e invisível sistema de segurança; nem soubemos de assaltos, arrastões e assédios de meliantes e marginais. Na culinária francesa, e também da Alemanha e da Áustria, preponderam a dieta franciscana da parcimônia e da salubridade, sem desgostar o paladar. O que vem à mesa é pouco e bom (dificilmente se vê alguém obeso nas ruas e lugares), nada das fartas iguarias das copiosas refeições brasileiras: as fatias de pão (o melhor dele, ao contrário dos daqui, é o miolo e não a casca) ao lado do prato, servem para limpá-lo após a comida, sempre acompanhada de vinho e sobremesa, igualmente regrados. O povo francês é notoriamente esguio, reticente, elegante, mas não aparentemente bonito e charmoso, como o de outras partes. O sexo masculino não produziu galãs sedutores do tipo de Tyrone Power e Marcelo Mastroiani. Os mais renomados são os feiosos Jean Gabin, Belmondo...; na plêiade feminina (tirando Bardot e Deneuvre) escasseiam-se as estrelas comparáveis à Sofia Loren, Greta Garbo e Marilyn Monroe. Reparando ao vivo nas ruas parisienses, as mulheres mais chamativas são, ao que tudo indica, as originárias de outras plagas. Nesse ponto as ruas brasileiras são bem mais enfeitadas e formosas. E um pormenor que salta aos olhos é a indiferença que o francês tem para com o turista, dando a entender que prescinde dele para levar sua vida, cônscio do valor inestimável do arraigado e firme patrimônio cultural (paisagístico, histórico, ético e estético) de sua nacionalidade. Sentindo às vezes, em face dos últimos acontecimentos propalados em todo mundo e particularmente no Brasil, que a humanidade anda um tanto ou quanto degenerada, constamos agora, andando pelos preservados lugares europeus que felizmente a degradação não se generalizou, e que, portanto, nem tudo está perdido. Vendo e observando as pessoas nas ruas e lugares, sentimos que elas são amáveis e não medonhas e que o mal contemporâneo, sendo localizado, pode ser remediado, e que o sol da moralidade pública ainda pode voltar a brilhar, mesmo nas partes já manchadas do mapa. O que mais chama a atenção do estudioso da História é que todo o imenso rol de obras monumentais construídas há séculos com a finalidade de alojar a ostentação da nobreza, é aproveitada atualmente para contentar a sede e a fome de uma beleza finalmente captada em sua inteira pureza pelas outras classes sociais, provando que apesar da finalidade ostentatória, o que ainda hoje está de pé foi construído para sempre, ou seja, não apenas pelo rito da vaidade, mas sim pelo amor da estabilidade, uma espécie de amor ao próximo, - no caso um próximo que está sempre no porvir. Uma estabilidade que enriquece? Os conceitos de progresso e de decadência estão desusados na parte européia que percorremos. O que predomina é o da permanência: nada da sanha frenética do progresso nem do torpor derrotista do conservadorismo. Em vez da depredação o que ressalta é o esmero da conservação dinâmica, se assim posso dizer. As edificações antigas estão sempre novas. Nas áreas rurais, vistas das margens das rodovias (nenhum buraco na pavimentação asfáltica dos quase dois mil quilômetros rodados), o que mais se vê são as pequenas propriedades, todas cultivadas em regime de cooperativas, de tal maneira que a rentabilidade não sofre descontinuidade na mercantilização – e os agricultores sentem-se seguros em suas atividades na concordância entre o projeto e o ritmo da parte material da vida, sem os deslizes e os contratempos do salve-se quem puder do capitalismo selvagem que oprime as classes trabalhadoras dos paises subdesenvolvidos. De forma que toda nesga de terra (desnivelada ou retilínea) da paisagem mais parece uma obra de arte em termos pictóricos de extensos painéis e diminutas aquarelas, brindando o olhar do viajante. As montanhas se abrem para o Reno passar em Koblens. Os vinhedos e ciprestes airosamente ensolarados na verdura, compartilhando da matéria pétrea inerte e viva enroscando e vivificando os penhascos quietamente agressivos – e assim o barco vai pela brisa subindo maciamente até Frankfurt. De vez em quando o sinal de um tempo mais remoto esculpe um castelo na ribanceira, como que remetendo à eternidade suas informações sobre a maneira de fazer da solidão um ato de cordial comunhão entre os seres de todas as espécies. E a uva, pode nascer da pedra? É ver para crer. Enquanto o trem de ferro chispa de um lado, o automóvel segue do outro lado, e o nosso barco no meio a subir o Danúbio, liricamente. Digno de nota foi o que aconteceu na corrida de nosso ônibus, horas depois, ainda no território alemão. Uma simples ultrapassagem a um caminhão da pista da direita para a do meio fez com que surgisse, subitamente, o carro da polícia rodoviária, interceptando o ônibus. Tudo estava sendo monitorado por câmeras ocultas ao longo da estrada – e o deslize é punido, com a constatação, inclusive, de que o motorista estava excedendo o tempo de serviço sem o descanso regulamentar. Assim é a regulamentação do trânsito naquelas paragens. E nas duas semanas da viagem só constatamos um abalroamento sem vítimas. Estados Unidos, Japão, Alemanha, França, países que mais participaram da Segunda Grande Guerra, são os que mais prontamente reabilitaram-se e hoje são as maiores potências econômicas do mundo. Fica a dúvida: por que os que mais gastaram são os que mais lucraram? A Rússia, a Inglaterra e a Itália não se reergueram igualmente. Por quê? Alemanha, Japão e França aprenderam a lição da não-agressividade e hoje são as soberbas nações que conhecemos. Os Estados Unidos não aprenderam a lição, invadiram países subdesenvolvidos e se deram mal – e hoje bem que merecem a execração pública das pessoas de bem de nosso tempo. Depois da destruição do Iraque, terão que reerguê-lo. À custa do sacrifício de quem? Sabemos que a história das conquistas e derrotas, dos ataques e defesas dos feudos, regiões, estados e nações européias em seus transes e períodos civilizatórios, foi escrita com suor, sangue e lágrima da violência e da piedade, ao longo dos séculos, cada território passando de mão em mão ao domínio de hordas e povos, sob a égide da valentia do despotismo e do afã do florescimento até redundar no império da glorificação. Séculos e séculos de quedas e levantamentos – e o resultado, hoje, da união européia consagra belamente o dístico do florescimento e da e da glorificação através do brio moral-intelectual (ético-estético) da conjuntura habitacional nos quadrantes continentais. Viajando ao longo das artérias o que mais salta aos olhos é o belo arranjo das coisas e dos seres na harmoniosa (e certamente ou relativamente feliz) convivência social das partes na globalização das estruturas (possivelmente) unificadas. O extenso verde a cobrir as planícies e colinas – os diademas e corolários – as coberturas e os matizes – a nostalgia de um lirismo endereçado ao porvir mais próximo e mais remoto – a paixão do belo que mantém quente o frio das estações e a neve dos anos – a transição telúrica da epifania do patriotismo – as legendas do amor e do desamor dos semelhantes e dessemelhantes – o epílogo interminável dos recomeços – a vivacidade que exorbita das aparências e que flui do íntimo, escorrega das feições, fixando aqui e ali a identidade da transcendência no por assim dizer perene transitório da pele e da medula do que, vivo, aviva. Um jantar musical numa casa noturna de Viena. A intencional e bem sucedida fusão do lírico com o burlesco, do folclórico com o clássico. De repente Viena passa a ser a capital do mundo, numa representação ao mesmo tempo da graça e da desdita humanas, em som e movimento da melodia das esferas baixando no coração do homem comum na graça que arrebata a transcendência, fazendo da sublimação uma jocosa brincadeira, que remete ao mesmo tempo aos folguedos caipiras dos velhos arraiais brasileiros e às aparatosas encenações lúdicas dos bailados e operetas dos espetáculos sofisticados das metrópolis civilizadas. De repente voltamos à infância, à adolescência e à juventude, em nossa terra natal – e no bojo do devaneio acordamos em outros sonhos, no patamar das auréolas da arte mais refinada das civilizações. Antes dos Alpes, entre os territórios da Hungria e da Áustria, o paisagismo esplende ainda mais, exuberante nos altos e baixos, em seus componentes alimentícios para o regalo do corpo e do espírito. A fertilidade do solo (no inverno as folhas caem pela ação da neve que, macerando-as, irriga e aduba o solo) enfeita e aviva os aclives e declives, com as espécies buliçosas – e aí entra a mão do lavrador cuidadoso com a manutenção das generosas oferendas, e faz sua parte, demarcando esteticamente as áreas de plantio, de pastagem, de moradia e de toda a constelação de caprichosos acertos ecológicos, através de apropriadas técnicas de subsistência, excluindo, naturalmente, os fáceis recursos depredadores do machado e do incêndio, causadores da esterilização, da erosão e da lixiviação, atentados comuns ao longo do continental e descuidado território brasileiro. Certas paisagens das colinas austríacas dão a impressão de serem colagens ilustrativas de páginas bíblicas, nas quais a mão de Deus e do homem são invisíveis e patentes. A probidade, o estoicismo e a energia são os requisitos do desempenho humano na obtenção dos bons resultados no trato com a natureza. Um de meus filhos fez um estágio numa Universidade alemã, em virtude da qual participou de treinamento em algumas indústrias, e constatou o estoicismo e a pertinácia do trabalhador alemão, formado e acostumado aos padrões rígidos da probidade no exercício das atribuições no próprio comportamento cotidiano. Ele estranhou, mas aceitou, ao entender que tal procedimento resultava no benefício do bem público que contempla a funcionalidade dos mecanismos estruturais da sociedade, sacramentando uma cultura social palatável. E assim resultam a rentabilidade econômica, a otimização dos bens de produção, a incentivação dos procedimentos ecologicamente corretos, e um modo seguro de estabelecer o amor no lugar do ódio nas relações humanas. A área rural brasileira, por exemplo, é uma espécie de paraíso em destruição, enquanto que a mesma área na Europa é uma espécie de paraíso em contínua construção. De forma que mesmo os chamados abismos de rosas são abundantes nas extensões alpinas. Veneza, palco maravilhoso das obras primas de Thomas Mann e de Luchino Visconti. É parte de um acervo cenográfico ímpar na geografia terrestre. Goethe e Nietzche, dois dos maiores gênios da cultura alemã, confessaram que conseguiram escrever suas melhores obras depois de passarem uma temporada na Itália. Uma exposição a céu aberto de obras-primas do supra-sumo do engenho humano nas cidades que visitamos: Pádua, Siena, São Geminiano, Florença, Veneza e Roma. Tantas figuras esculpidas quantas ao vivo nas praças e labirintos: a junção momentânea do perene com o efêmero (as obras em mármore e ouro e as pessoas em carne e espírito). Todo espaço é aproveitado na expressão da sensibilidade: o acúmulo, a sobraeposição, a prodigalidade, nada disso cansa o observador porque é diversificado, múltiplo em suas conexões e intenções, de forma a harmonizar a variedade na unidade sensitiva das mentes e corações das pessoas. O Estado do Vaticano, no coração de Roma com toda a circularidade e altitude, os Arcos, as Colunas e os Templos, o Museu , a Capela Sixtina, ah!, saímos de lá boquiabertos de incisiva estupefação, para enfronhar nos arredores igualmente aprazíveis e majestosos das ruínas do Coliseu e do Palatino, toda uma cidade de mármore e ouro, de palácios e anfiteatros, toda essa emendada maravilha configurando o ponto mais alto da eterna exuberância romana. Nenhum outro ponto carismático do mundo (nem Meca nem Jerusalém) supera Roma em sortilégios e devocionismo, é o que pacificamente se diz. Muitas pessoas criticam a profusão de imagens pintadas e esculpidas em cada ponto que se olha, às vezes até embaraçando a vista nos altos, nos lados e nos pisos, sob a alegação de que seria necessário um espaço em branco para a vista descansar, de vez em quando. Mas creio que no caso a intenção da obra era mesmo ser inteiriça e não parcelada, isso para melhormente contar a obsessiva história da beleza da fé cristã – a caminhada na terra na direção do céu. Como num livro de páginas copiosas e compactas, como os de Marcel Proust, de Dostoievski, de Joyce – ali nas cúpulas, murais e pisos está o imensurável livro das imagens, para ser lido de uma vez, inteiramente (na vista geral) ou aos poucos (em parcelas) na atenção concentrada dos detalhes. Todo bom livro não é também assim? É só começar, munido de fôlego e discernimento, e seguir adiante, na direção do infinito multifacetado. Pelo que vimos (e vimos pouco), contatamos que as cidades antigas da Europa continuam sendo as partes mais novas do conhecimento humano, mais centrais do continente, uma vez que não se deixaram contaminar pela chamada febre progressista das edificações imobiliárias acima de sete andares. Fica evidenciado, assim, que o valor histórico é tão importante na vida dos povos que chega a competir até com a atividade lucrativa da indústria e do comércio. A valorização material e imaterial desses bens é tão afirmada pelo povo em geral que não se vê nenhum desses bens rabiscado, mutilado, depredado. O que prepondera é o respeito por eles, não só das autoridades constituídas como do povo em geral – a tal ponto que até mesmo dispensa a presença ostensiva de qualquer tipo de policiamento nas ruas e nos lugares. E é um prazer de nossa parte constatar e afirmar que quem construia tais obras nem sonhava, naquela época, que estava propiciando a nós, privilegiados herdeiros do amor da verdade e da beleza, a mais ampla e verídica fruição de uma bela e feliz ressonância da criatividade humana. 

(*) Viagem à Europa, de 06 a 20/10/06, partindo de São Paulo, passando por Paris, Koblenz, Frankfurt, Viena, Klagenberg, Veneza, Pádua, Florença, São Giminiano, Siena e Roma. Grupo de 28 pessoas, ciceroniado por Antônio Agostinho Perez, poliglota, professor, historiador.