domingo, março 25, 2007

ILUSTRES ANTEPASSADOS

Quando pesquisei (durante seis anos) os dados genealógicos para escrever e publicar o livro “Família Oliveira Barreto”, tive de peneirar a multidão de dados colhidos em quase 50 cadernos de 100 páginas nos cartórios, paróquias, cúrias, arquivos públicos, jornais e livros e mais livros. De sorte que quando dei por encerrada a pesquisa (que certamente nunca tem fim), fui obrigado a deixar preciosos dados de fora, isto para não complicar as linhas parentais de descendência, ascendência e colateral dos antepassados paternos e maternos. Mas hoje, fazendo um expurgo do material repetitivo e até desnecessário aos recursos de novas consultas, deparei com a parte da filiação fora do casamento (ilegítima, segundo os trâmites legais) de minha tetravô paterna, a magnífica e bem-amada Rosa Angélica da Luz, filha de Luiz Pinto da Costa (fidalgo português) e de Anna Perpétua de Oliveira (descendente de bandeirantes constantes na lista da chamada nobiliarquia paulistana). Ela devia ser de uma formosura incomum, arrebatando em estado de solteira o coração do todo-poderoso Capitão-Mor Pedro Teixeira de Carvalho, filho do casal português Gaspar Teixeira de Carvalho e Anastácia, dono da famosa (e aurífera) Fazenda da Ponta do Morro, em Prados, desde 1729, que depois foi palco das reuniões dos Inconfidentes na fase da conspiração e do planejamento. Ele era casado com Clara Maria de Mello, filha de Paulo de Mello Pereira e Mariana da Costa, também portugueses, com quem teve os filhos Gonçalo Teixeira de Carvalho, Capitão-Mor da Villa de São José Del-Rei, e Hipólita Jacinta Teixeira de Mello (1748-1828), heroína da Inconfidência, além de ser esposa de Francisco Antônio de Oliveira Lopes, heróico e degradado Inconfidente. A Rosa Angélica da Luz, confirmava na própria pessoa todos os substantivos do nome, de tal maneira que o Pedro se deixou levar pela paixão diante de tanta atração, e acabou “roubando-a” da família domiciliada em São João del-Rei, levando-a para viver com ele num riquíssimo castelo do Rio de Janeiro. Da união nasceram os filhos, conforme abaixo: 1) Pedro Teixeira de Carvalho, o Moço (1765), figura de escol nas decisões políticas e administrativas da época, ocupando importantes cargos na esfera provincial junto à Corte, merecendo a homenagem póstuma de ter seu nome dedicado à praça principal da cidade de Barbacena, onde morava. Casado com Maria Lucinda, teve a filha Claudina Celestina da Natividade (1787) que, casou-se com Antônio Francisco Teixeira Coelho (1787-1851), filho adotivo e herdeiro universal da citada heroína Hipólita, viuva do Inconfidente Francisco Antônio de Oliveira Lopes. O casal teve 14 filhos: Antônia, Hipólita, Maria do Carmo, Francisco, Pedro, João, José, Maria Umbelina, Maria da Glória, Maria Cristina, Joaquim, Maria da Encarnação, Geraldo e Maria José. Outros filhos de Pedro e Maria Lucinda: 2) Joanna Bernardina Teixeira (1771) cc José Pacheco Faria Braga e depois com o Dr. Guilherme. 3) Anna Tereza (sem informações). 4) Antônio Teixeira de Carvalho (1774), sem outras informações. Meu livro foi publicado em janeiro de 2006 – e até hoje carrego na consciência o pesar de não ter mencionado as pessoas supracitadas, legítimos parentes consangüíneos, por serem filhos e netos de minha pentavó Rosa Angélica da Luz, que depois casou-se com Faustino José de Castro (português do Porto), Solicitador de Causas (advogado), com o qual teve minha tetravó Anna Joaquina Cândida de Castro que se casou com português, também advogado (Solicitador de Causas), Antônio José de Oliveira Barreto, pais de Bernardo José de Oliveira Barreto casado com Josepha Maria de Jesus, e Francisca Lucinda de Oliveira Barreto casada com Vicente Ferreira do Amaral. Creio estar preenchendo assim a lacuna do livro, sabendo que o parentesco é longíncuo, mas comprovadamente consangüíneo. Que a escritura desta nota possa facilitar o rastreamento de um melhor conhecimento, embora tardio, mas ainda necessário sob o ponto de vista da pesquisa genealógica.

sábado, março 24, 2007

AS RUGOSIDADES DA PASMACEIRA

Quando penso, leio e vejo as pessoas airosas e bem sucedidas à guisa de ventura à flor da pele realinho meus senões a sufocar velhos e repetidos soluços existenciais de uma vida custosa que se acaba a cada fim do dia e que aos trancos e barrancos recomeça na pedreira de minhas íngremes subidas do cotidiano igualmente escarpado. Outro dia que se esqueceu de amanhecer perdido noutra noite bem amoitada nas síndromes vertiginosas da vastidão inescapável eu estava no círculo adensado de rochedos levando o corpo dentro da roupa que mais desnudava que vestia. Assim é a vida que não quer viver condenada a purgar os pecados de outras airosas e bem sucedidas? Por que de repente e de uma vez por todas não passamos a ser (todos no mundo) peregrinos da felicidade?

ONFALE

Dois olhos são o olhar, o agir da luz, como é e como está nela: o verde a brilhar na alegria da alma corporificada na leveza. A criar problemas e perguntas, como se a chama além do olhar, alongando-se na respiração, excitasse os signos e as veracidades oníricas. O florilégio da musculação, o passo aéreo? Os cabelos da melodiosa juventude? Um carisma simples, completamente? O limbo da inspiração? Dois olhos são muito mais do que muitos. A túnica inconsútil da esbeltêz, o lívido agapanto do riso inocente e também a paixão de meu avô, o amor de meu pai, a minha religião. A genealogia chegou nela e parou. Nem precisa de outra pessoa no mundo, assim como ela é e como está: o olhar em alongamentos incansáveis. É só chegar aos lábios para sentir a alma em movimento dos braços e das pernas, a falar uma, duas, muitas palavras inéditas; a dar um, dois, muitos beijos extraordinários. Ó Onfale que humaniza Hércules: um amor de pessoa como é e como está.

quinta-feira, março 22, 2007

TEMPO DE PURO JARDIM - Conto

Em determinado período de minha juventude (dos 16 aos 20 anos), morei em Belo Horizonte, trabalhando de dia e estudando de noite. Nas férias de fim de ano, tirava duas ou três semanas de folga no emprego (era comerciário) e ia matar as saudades da terra natal, Bom Despacho, onde os parentes e amigos recebiam-me de braços abertos. Minha mãe morria de medo dos descaminhos oferecidos na grande cidade, que eu poderia trilhar. Ela e minha (única) irmã Vanicia, perguntavam sempre nas cartas, se eu freqüentava as missas dos domingos e dias santos de guarda, se era benquisto no emprego, nos estudos e na roda dos amigos e, além disso, queriam sempre saber se eu já tinha arrumado namorada, como ela era, se eu gostava dela, se ela era bonita e simpática. As duas certamente acreditavam nos melhores antídotos dos descaminhos da juventude: a religiosidade e o namoro sério. Naquele final de um dos anos da década de 60,eu estava particularmente triste porque tinha mudado de emprego e em vez de melhorar de vida, tinha piorado. Os novos ares da viagem, no entanto, e as boas fisionomias dos parentes e amigos, logo fizeram-me esquecer o contratempo. Minha irmã estava muito alegre, porque ia apresentar-me à moça chamada Célia, de Abadia de Pitangui que, segundo a irmã, não era mais bonita porque não tinha onde caber mais beleza nela. - É minha colega no Curso de Aperfeiçoamento de Florestal e veio passar o fim de semana na casa de Olga, outra colega do nosso Curso. A desculpa é que veio conhecer a cidade, mas na verdade ela veio conhecer você: isso sim, tenho certeza. Não vai me decepcionar não, viu? Minha irmã era uma flor de pessoa. No gosto dela não haveria desagrado neste mundo, nem mesmo para qualquer um dos filhos das unhas que só vivem para causarem sofrimentos. Pessoas assim agradáveis Deus leva cedo pro céu.e ela foi cedo, mas noutra estória. Ainda hoje vivo simultaneamente em três dimensões: o passado a entrar no futuro, como os ponteiros adiantados de um relógio amalucado, e o presente que também vai e volta no rol das experiências desencontradas. A luz do espírito é diferente da luz da inteligência – ambas iluminam coisas diferentes, com as intensidades que variam de pessoa para pessoa. A irmã a entreter-me, naqueles dias, nos guisados e berlindas, a falar das garotas que cresceram, reapresentando-me umas e outras: qual delas podia me cativar? A mãe a costurar uma porção de camisas bonitas, a fazer quitandas, pamonhas, mingau de milho verde, os doces disso e daquilo, os mais requintados. O que mais podia desejar naqueles dias? Preciso ser jovem de verdade, cair em mim de uma vez por todas – assim me auto-criticava, de vez em quando. As casas em paralelo e as ruas da cidade, nas quais as conversas das pessoas participam de longas estórias. E eu? Estou sempre em muitos lugares ao mesmo tempo, a divagar devagar. Por que a imaginária câmera não se aproxima do rosto de Débora Kerr? O rosto de qualquer pessoa, em qualquer lugar é o centro de gravidade do cenário.... Assim fico imaginando o rosto da tal de Célia, que minha irmã cita com superlativa ênfase? As semelhanças com os de Ida Lupino, Olívia de Havilland, Verônica Lake..., seriam meras coincidêancias? - Em quê pensa tanto?, minha mãe me surpreende com a pergunta, ao pilhar-me cabeceando na espreguiçadeira do alpendre. O encontro da apresentação foi na Praça, perto do clube social e do cinema: iríamos ao baile ou ver o filme “Antes do Dilúvio”, com Marina Vlady? De repente ela chegou, sem me olhar diretamente, como se não tivesse pressa e fosse tranqüila de natureza. “Como ela é de rosto?”, eu tinha perguntado à Vanilia, que adiou a resposta naquele dia, dizendo: “Espere para ver. Garanto que não vai se decepcionar, quando vê-la de perto como se fosse uma dessas estrelas de cinema que você tanto idolatra.” vendo-a agora, olhei para a irmã, confirmando no olhar a certeza de acreditar que ela nunca faltava com a verdade, desde a mais tenra idade. Um facho de luz pousava, aureolava, o espaço onde ela estava, dos pés à cabeça. A pele fina como o espírito: aquelas veias de luz no rosto, uma espécie de fogo verde para acender o súbito encantamento. Um tempo de puro jardim pousa ali na pessoa dela – foi assim pensando que eu mesmo respondi à pergunta antes feita à irmã. Mal acreditava no que via ali na praça, então ainda mais linda da Matriz de Nossa Senhora do Bom Despacho. A formosura nela parecia uma nova espécie de felicidade, que extrapolava, contaminava toda a adjacência avistada. Isso mesmo, pensei. Ela podia dar o que tinha, que ainda sobrava muito: a beleza falava para dentro, enquanto olhava para fora? As fontes da divindade, que jorravam do interior da Igreja, mesmo ali na suspensa praça noturna: o parapeito circular dos canteiros do jardim Uma ereção mental tão forte assim que dura toda vida, merece consumir toda a vida! A consistência da fantasia tem sumo poético: eu estava então a sonhar, prestes a realizar? “Nutres o ardor com a própria energia, causando fome onde existe fartura”: por que agora os versos de Shakespeare? “Saibas ler o mundo que o amor escreve assim fica o amor a ouvir com os olhos”. Até hoje sinto que o mel da vida em minha boca vem quando pronuncio o nome dela: Célia, Tempo de Puro Jardim. Naquele instante quem mais sentia os efeitos do impacto: o cérebro ou o coração? E ela, como será que me via, assim aos poucos, naquele começo de noite diáfana? Guardei algumas de suas palavras, que guardo como perolas inestimáveis, que não mostro a ninguém, tão particulares as considero. Fico até propenso a dizer que o amor é mais forte do que a própria poesia. Será mesmo? O fogo apaga na lenha que se consome, mas a luz continua a brilhar nas estrelas. Guardei as palavras daqueles momentos. Não eram do dicionário. Nunca mais as encontrei em outros momentos. Não eram de nossa vil realidade! A noite estava apenas no começo dos roseirais e das campânulas. Ela conversava com minha irmã. Dentro dela existia algo que ninguém sabia, que ficava para depois? Por que Deus me fez assim tão observador, tão minucioso nos afins e nos efeitos? Se ela der mais um passo – eu pensava, angustiado -, vai enevoar-se ainda mais no mistério ainda maior.... Isso eu tinha que evitar, antes que fosse tarde. Uma nova poesia começava ali na minha vida? O que vai ser de nós depois, dentro do cinema, lado a lado e nos meus braços no baile? Ela falava com minha irmã: as duas pareciam duas irmãs. Mas aí chegou o Desmancha-Prazear do Aprígio, o caçoísta imperdoável. Ele tinha vivido em Belo Horizonte, onde se deu mal, depois de encher a paciência dos conterrâneos. Ele sempre foi uma incongruência, um cu pra conferir, como se diz. Não deixava passar nada em branco. Se via um cachorro, batia o pé no chão, a dizer: “Vai embora daqui, seu titiu, não tem vergonha de andar pelado no meio dos outros, cachorro?!” Se alguém o esnobasse e contasse uma piada melhor que a dele, ele replicava com facécias e gozações desagradáveis. Um desembestado que nunca se manca, ostentava a facilidade de conquistar mulheres em todos os lugares, esmerando-se no vestir, no calçar, no pentear e no perfurmar. Estava agora com um carro pintado de novo, dando seu notório espetáculo exibicionista pela cidade, para baixo e para cima, sem parar. Será que ele veio melar o meu romance com a moça, que ainda bem não começou? Chegou cumprimentando, obviamente interessado nas moças, apesar de ser casado e amigado com muitas mulheres. Falava comigo de olho na Célia, que logo entendeu seus ares cafagestistas. Quando percebeu que as moças já ensaiavam alguns risinhos irônicos, ele voltou a atenção para cima de mim e assim desatento diante da lábia dele, acabei caindo no ardiloso contratempo. Depois do manjado preâmbulo da conversa mole, ele passou a insistir que eu desse um pulo com ele na casa onde morava ali perto, a fim de mostrar um trombone de vara, novinho em folha, que acabara de comprar. Não era na verdade uma conversa pra boi dormir? “Amanhã irei”, eu lhe dizia. Ele insistia, insistia. “Agora estou com elas, não vê, Aprígio?” E aí sabem o que ele teve o desplante de fazer? Dirigiu-se às moças e pediu licença para que eu o acompanhasse por alguns minutos, para tratar de um assunto urgente. Elas concordaram, é claro, pois queriam se verem livres dele. E lá fui eu, feito bobo, a seguir o descarado. Ele estava um tanto bêbado? Desconfiei das rateadas de seu carro e de seu falatório inesgotável. O que afinal queria mesmo exibir agora? Que estava bem de vida e mais ajuizado? Será que não sabia que eu sabia de suas trapaças, que devia a deus e a todo mundo na cidade, que era casado no Arraial do Riacho, amasiado no da Boa Viagem e tinhas outras donas sobressalentes na Estiva e na Bemposta. Como fui cair na besteira de acompanhar um cara assim tão enrolado paquerador? Inconha danada. A ruindade no mundo tem seus filhotes em toda parte. Como fui bobo, como sou bobo de cair assim na esparrela! E foi assim que o pior aconteceu: o carro derrapou na descida da rua, subiu na calçada, atropelou uma porção de gente e quase matou um menino de oito anos de idade, só parando contra um muro de pedra do outro lado da rua. “Você está ferido?”, ele perguntou. Ele estava intacto e lampeiro, não sofreu uma escoriação sequer. Eu tinha metido a cabeça no para-brisa, ferindo-me a testa, e tendo que passar a noite no hospital, para observações. E nunca mais vi aquela moça, que até que podia ter dado outro rumo à minha vida. A minha vida até hoje peregrina e intermitente.

quarta-feira, março 21, 2007

ACENDE A LUZ - Conto

“Com efeito, comerás do trabalho de tuas mãos, bem-aventurado serás, e cumulado de bens. Sua esposa será como uma vide fecunda, no interior de tua casa; teus filhos, como rebentos de oliveiras, ao redor de tua mesa”. (Salmo 128-1 a 3, versão segundo os textos originais, pelo padre Matos Soares, tipografia Alberto de Oliveira, Porto, Portugal, 1955). Josepha Maria de Jesus, acende o fogo e apaga a luz. Nascida em 1809 e falecida em 1867, filha de Manuel de Souza Pinto e de Anna Joaquina de Souza, possível sobrinha-neta de Tiradentes, natural do Distrito de Cláudio da Villa de São José Del- Rei, nas cercanias da Villa de São Bento do Tamanduá. Casada no Distrito do Desterro em 02/07/1825 com o Comandante da Guarda Nacional Bernardo José de Oliveira Barreto, que lutou ao lado dos insurgentes na revolução Liberal de 1842. Mãe de Antônio, Francisca, Bernardo, José, Bernarda, Joaquim, João, Manuel, Pedro, Rosalina e Mariano, avó de centenas e milhares de netos, bisnetos, trinetos e tetranetos, rebentos consangüíneos, saudáveis e bonitos, herdeiros de sua lonjura participante, de suas lembranças persistentes. Quão gratificante é para o escrevinhador bancar o coruja e gabar o toco, os galhos, as folhas, as flores e os frutos! Ela morava em si mesma, abençoando e felicitando a uns e outros, espelhando-se nos descendentes e no marido, que jamais teve filhos fora de casa (teve uma Mecia em estado de solteiro, e uma Maria em estado de viúvo), sempre ajuizado e atencioso, a rodar o meio-mundo regional na administração dos bens públicos e particulares com a precisão matemática do rigor da lei então em voga. Ela queimava as calorias da boa vida que a sorte lhe destinara participando das lidas dos casarões da fazenda e do arraial, aprendendo e ensinando as boas regras da convivência familiar e social. Uma santa mulher da argúcia e dos trejeitos congênitos. As santas de nossa incondicional devoção também são assim, não? Sei muito bem que há mais coisas para viver do que para contar. Às vezes gosto de ir além de mim mesmo, além dos ares e das superfícies, chegar às paragens do ânimo sereno onde vivem os melhores dias sem que nada os envenenem, como diria Dino Buzzatti. E lá uma vez ou outra um parente antigo entra nos meus pensamentos, acionam meus impulsos e forçam-me a cometer atos às vezes falhos que depois revelam-se alheios à minha naturalidade. Às vezes penso que o sonho de mitificar a realidade já passou e que agora temos que comer a poeira do deserto, beber a água que o gato nem lambe. Mas uma voz antiga e feminina (de minha mãe, da minha avó, de minha bisavó, da minha trisavô : ou todas, neste ponto da questão é a mesma pessoa?) vem dizer que o mundo está morrendo e nascendo quase ao mesmo tempo e que quem quiser pegar alguma parte do belo espetáculo, que não durma no ponto. Só quando o passado se tornar por demais remoto é que estaremos realmente perdidos e seremos outros seres, então mortos e insepultos, sem nem mesmo um destino para nele espelhar de novo e nele encostar novamente. Sei muito bem que este não é o meu caso. Mas às vezes penso que ignoramos da vida o que as mulheres não dizem (o que elas dizem, ah disso estamos cansados de saber), pois elas são as fontes da vida. Onde elas chegam, sentam ou deitam, algo ali que é visto por elas é ao mesmo tempo tocado por elas – e assim fica tocando como um violão-fantasma enfeitado de flores sempre vivas.É mais fácil um dragão aparecer na janela do quarto do que Deus desaparecer da porta da sala, isso ela dizia aos filhos, do alto e no fundo das noites escuras da centenária Fazenda da Laje. Ela que, no meio em que vivia, desmentia a opinião do Conde de Assumar, que repelia a cerviz dura e rebelde do povo mineiro. Um povo ensimesmado no amor próprio exorbitante, se assim posso dizer. Lembro-me dela nos caminhos da imaginação, como se fosse aqui e agora. Ainda hoje está comigo nos vínculos intemporais da afeição incondicional, com seus cabelos alvoraçados e brilhantes. De hereditária inconfidência, ela às vezes passeava nas terras da família, cavalgando pelas lajes e cachoeirinhas e pastos de gabirobas das vizinhanças flexíveis (que se aproximavam e distanciavam de acordo com as vontades dela). Às vezes defrontava uma enigmática mulher vestida de preto – e ela se perguntava se a viúva perdera alguma coisa na região ou se estava perdida naqueles rincões e precisava ser urgentemente encontrada. Por que o tatu adentra o desconhecido e a coruja fica gongunando no moirão da porteira com tamanha tristura? Por que às vezes chorava sem querer? O marido corria o risco de ser preso por desobediência civil e militar? E então, o que será da Fazenda, do Casarão do arraial, das plantações de cana e de café, das dezenas de escravos ali tratados como gente? O que será dos filhos e dos netos? Seus pais livraram-se do anátema da Inconfidência, antes de falecerem, mas que foram humilhados e ofendidos, isso, moralmente, foram. E os filhos, flores já aprumadas, não iriam frutificar? Alguns errariam o caminho certo da vida certa neste mundo tão mal formulado, tão mal povoado? Temos que pagar os erros dos outros? Assim ela às vezes parecia deslizar como uma cobra coral nas veredas do quintal. Algo mais doce do que o favo de mel da abelha jataí? Ali, de vez em quando, a expressão de seu rosto ganhava a expressão do olhar de um sol enluarado? Suas palavras às crianças da casa boiavam no ar como flores despreendidas das hastes, como diria Afonso Arinos, tempos depois. A coração adocicada do rosto, a linda clareza do colo...: não era à toa que o marido deixava os amigos do arraial falando sozinhos, e picava a mula no caminho de casa. Passado tanto tempo, fico pensando nela, ainda tão viva em meu pai, em mim, em meus filhos. Como ela poderia imaginar ou mesmo sonhar que em cento e tantos anos depois o mundo seria outro, a vida tão diferente, mesmo aqui nesta tão distanciada região do antigo sertão do tamanduá? O avião, a nave espacial, o satélite artificial, a confraternização online os anjos metálicos cegos no bem e no mal desabalados nas linhas aéreas sem acostamentos a industria cultural do cinema a comunicação de massa da televisão sem o embargo da gagueira e da catarata com o adendo de falar quem pode e calar quem consente o imperialismo norteamericano sempre ouriçado o sexo explícito escancarado a peste aidética camuflada a poluição ambiental estimulada o desequilíbrio ecológico abusivo as mamonas rebentam no pé, ao sol esturricante a droga narcótica enriquecendo os insanos, desarticulando a sociedade a locupletação da imoralidade social a instituição da impunidade o culto da violência na rivalidade das audiências a piedade virou folha morta que o vento transporta para outros planetas a bigodeira sem vergonha dos pedófilos a desintegração do átomo no fim da linha o crime organizado das máfias de todos os matizes o fundamentalismo irrascível a onça dentuça de olhos parados na desavença os xopíngues entulhados de quinquilharias supérfluas o som da zoeira, a zoeira do som tanta libido desperdiçada tanto terrorismo globalizado os olhos maiores que os buchos dos arrivistas a clonagem sem cara e sem coroa. Ah, ela bem que dizia que quem namora abre os olhos e as janelas, que quem ama abre as portas e a alma ela que cuidava de tudo e de todos ainda tinha tempo para contar e cantar o pirulito que bate e bate o pirulito que já bateu quem gosta de mim é ela quem gosta dela sou eu ela, Josepha Maria de Jesus apaga o fogo e acende a luz de meus olhos indormidos.

segunda-feira, março 19, 2007

AS MULHERES, SEUS VERSOS

A vontade cria o impossível e depois chora aos pés dele. Enquanto vemos onde está a perfeição vemos a inexistência dos caminhos para alcançá-la. A harmonia noturna (até parece uma lição de Jung) refere-se à interação dos opostos na pugna diurna. Até mesmo a burrice tem o seu encanto, e a ruindade o seu mistério. A sujeira vermelha dos lábios tão puros. Os seios de mel do pensamento: a mulher!: o florilégio dos eventos multidimensionais. Ana Cristina César, entre os complementos: o gato era um dia imaginado nas palavras. .Dora Tavares, uma tenda para instalar suas maneiras. Heloisa Maranhão, as moradias séptimas; esta velha é um pássaro. Henriqueta Lisboa, ave poesia, duas gotas de orvalho num bemol. Lacyr Schettino, oh flor obsessiva, foi sem antes, e deslembrada. Laís Corrêa de Araújo, luz de uma água, sabes da vida a mansa cor? Lara de Lemos, adaga lavrada, retomo-te em meus dentes e prossigo. Leonor Vieira-Motta, tudo de bom! melhor ainda fazer das pessoas poemas. Lélia Coelho Frota, alados idílios entre as duas transidas luas. Maria Esther Maciel, a sina de mulher: e te senti no além de meu desejo. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti: os azuis se abraçam nos horizontes. Maria Tereza Horta, as nossas madrugadas: e possuíres de mim o que não sabes. Renata Pallotini, de cavaquinho a guitarra: envelhecias, forma empedernida. Oga Savary, a noite dessa tarde; solidão, então me invento. Regina Célia Colônia, sonha que o sol de fora é o de dentro. Terezinha Alves Pereira, persiana de flores: meu senhor de olhar de espumas. Hilda Hilst, pensei subidas onde não havia rastros. Yeda Prates Bernis, na carta guardada sempre murmura o silêncio. Stela Leonardos e nas veias vivos veios. Clevane Pessoa, miríades de bolhas mínimas, pomares de frutos ignotos. Adriana Versiani, um dia a alma distorcida dos espelhos. Luciana Tonelli, especializar em ver olhares. Leila Miccolis, o amor que dura pouco, por toda vida: Sou da floresta o mistério a clareira. Astrid Cabral, no preamar do meu sonho. Quando eu dizia amor um oceano desatava. Adélia Prado, as fainas da viuvez trabalham uma horta nova. Ana Caetano, a textura do deserto da palavra eu. Célia Lamounier de Araújo, as sirgas e organsis; resvalar seu medo na cisterna dos sonhos. Maza de Palermo, na pousada dos tropeiros, o tempo comeu as virgens e os joelhos das beatas. Araci Barreto, a liberdade além das estrelas, bem longe, além dos horizontes. Marly de Oliveira, falar de amor não é apenas atravessar algum deserto.

sábado, março 17, 2007

AS CAPIVARAS DO RIO ITAPECERICA

Sou de um lugar (Marilândia) e de um tempo (década de 40) que não existem mais, a não ser em fotografias nos álbuns e paredes, como diria Carlos Drummond de Andrade. Naquela ao mesmo tempo aquarela e quadra inesquecível, repleta de auspícios e regalias, a gente testemunhava a exuberância da vida natural ofertando mais interesse e proveito, mais saúde e alegria do que a exuberância da vida artificial de nossos dias. A fartura das águas pluviais e fluviais: as chuvas de todos os tamanhos, de tantas ressonâncias, lambanças, enxurradas, germinação e floração dos vegetais, tantas goteiras e enchentes e vazantes nos córregos e rios, cachoeiras e lagoas; os rios jogando suas águas de barranco a barranco e, às vezes, seus peixes longe do leito. Quando penso na mudança ocorrida, comparo as conquistas humanas com as perdas, ou seja, do surto do chamado progresso com o desfalque dos bens subtraídos à natureza, constato que não há mais o equilíbrio contábil entre as perdas e as conquistas. Creio que um estudo mais aprofundado e não um texto ligeiro como este, pode levantar, discutir e esclarecer o atual desequilíbrio nos termos da rentabilidade humanística e não meramente financeira –pragmática. Temos hoje a televisão de toda noite e não mais as estrelas e o luar e as estórias que se contavam na beira do fogo; temos os mantimentos, verduras e frutas dos ceasas metropolitanos e não mais os da comida caseira, colhidos nas roças e nos quintais. Naquele tempo as águas correntes (e mesmo as aparentemente paradas dos remansos e lagoas) hospedavam as submersas manadas de traíras, timburés, bagres, mandis, carás, piabas e também os jacarés e aves aquáticas e nos arredores as capivaras (pequenos hipopótamos?) e as pacas, além das lendas e as alusões de tanta sacralidade. Os campos e matas abrigavam os lobos e as jaguatiricas, os coelhos e tatus, os gatos e cachorros do mato, os macacos e tamanduás, os micos e os piriás, as cotias e os gambás, os ouriço-caixeiros e as cobras (cascavel, jararaca, urutu, jaracuçu, a de vidro, e tantas outras de variadas cores e feições e peçonhas e belezas), e também a múltipla revoada da passarada: do inhambu às rolinhas, da acauã ao papa-capim, da juriti à saracura, do sanhaço ao bentivi, do sabiá ao pássaro-preto, do joão-de-barro ao curió, do canarinho ao pintassilgo, do tico-tico ao papagaio, da maitaca ao periquito, do gavião ao urubu, da ema à siriema, sem falar na extensa fileira dos animais mais domesticados: jumento, marruás, boi, vaca, mula, égua, gato, cão, pato, galinha, marreco, peru, porco, bode, carneiro..., tudo isso sem falar nos bichinhos voantes e cantantes, zangantes e reluzentes como os vagalumes, as cigarras, as aranhas, as abelhas, os marimbondos, os sapos e rãs, as pererecas e lagartos e tiús e as minhocas e os minhocuçus, sem falar nos mosquitos e carrapatos, nos cipós e espinhos, nas flores e frutas em suas estações generosas e infalíveis. Para minguar e quase exterminar tanta prodigalidade natural nos quadrantes do Distrito, a chegada do fatídico progresso da modernização regional ,através da viação férrea atravessando o Centro do Estado, trouxe de outras plagas para Divinópolis cerca de mil famílias de ferroviários para desenvolver a nucleação urbana e desarticular a vida rural em suas variantes de uma até então virginal biodiversidade. Os adventícios chegaram e tomaram conta do pedaço, como se diz, principalmente depois de perceberem o potencial alimentício das paragens circundantes. Em vez de irem ao comércio comprar os víveres, eles iam aos bandos com seus facões e espingardas exercitarem suas habilidades nas artes de caça e pesca, matando sem dó nem piedade tudo que, vivo, surgia ao longo de suas andanças recreativas de fins de semanas. Assim teve início a sanha predatória no chão, nas árvores, nos ares e nas águas de toda a região, mormente nas quinze bandas de Marilândia, arraial munido de uma estrutura propiciada em forma de vendas, moradias, estação da estrada de ferro, moças bonitas e pessoas que bisonhamente não viam nenhum perigo na criminosa invasão dos domínios até então naturais e bem sortidos de vida mineral, vegetal e animal. Invasão que durou anos de matança indiscriminada, num torpe esporte que chegou ao ponto de esvaziar um belo universo de vida até então cantante e fagueira, transformando o prodigioso rincão numa penúria desértica de campos pelados, restingas e outras paragens sáfaras que, mesmo com o passar dos anos, não se refaz, não se refaz. Mas estamos aqui para falar dos apáticos e tranqüilos seres que dão título ao nosso brejeiro texto: as capivaras do Rio Itapecerica. Os remanescentes da espécie, depois da relutância de muitos anos, resolveram acompanhar os roceiros no êxodo rural, beirando o rio, longamente, até acomodarem-se no fundo dos quintais das casas marginais ao longo do curso fluvial. A chegada delas causou espanto nos moradores, que logo se encantaram com a doçura delas, na insólita e repentina companhia delas, mesmo ali, quase ao alcance das mãos até que enfim um tanto civilizadas, lembrando-me do dito popular que define o mineiro como o cara cabeçudo que, não podendo livrar-se de um desafeto, convida-o para ser seu compadre. Assim elas, para se livrarem do homem-caçador lá nos confins da roça, vieram viver no fundo do quintal deles, placidamente, e assim por obra da misericórdia divina, cativando a população com toda a simpatia de sua natural mansuetude. Foram chegando às apalpadelas, ressabiadas (cheguei a contar um dia, ali do calçadão do Porto Velho, um lote de 13 delas, do outro lado do rio), fuçando e pastando na vegetação das coivaras, juncos, capins e moitas de cipós, no meio podre do lixo urbano jogado e sedimentado nas margens fétidas e nojentas do rio. Os moradores ribeirinhos abismavam-se na estranheza de um espetáculo tão naturalmente encenado logo ali nos fundos do centro da cidade, perto de uma siderurgia barulhenta e fumacenta, nas margens deturpadas de um rio que virou uma cloaca, ali mesmo pertinho do leito de uma ferrovia oleosa e trepidante. Muita gente até duvidava: capivaras?! Como é que pode? Afinal que bicho é esse? Procurei saber e constatei que são grandes mamíferos roedores, representantes das famílias das hidroquéridas, seres silvestres, de vida metade aquática e metade terrestre, comedeiros de víveres específicos das várzeas e matas ciliares, criados e sazonados de conformidade com o húmus e o oxigênio do meio-ambiente agreste e fluvial. Mas como podem estar aqui no lodaçal amanteigado das sucessivas descargas dos esgotos de dezenas, centenas de milhares de residências e escritórios e fábricas? Há mais de um ano que o pessoal das caminhadas do calçadão do Porto Velho (as pessoas que fazem caminhadas são, geralmente, mais conscientes da cidadania de todo ser humano que se preza) admiram e fazem (acredito) mentalmente uma genuflexão em respeito ao que parece uma pacífica convivência entre seres silvestres e urbanos. De vez em quando algum maroto ainda dá seu palpite infeliz, contemplando-as: “aquilo ali numa panela, hein?”, e outro caminhante mentalmente responde: “e você atrás das grades, vendo o sol nascer quadrado, hein?”

quinta-feira, março 15, 2007

EDUCAÇÃO FÍSICA

À Inês Belém Barreto. 

Andar na vanguarda na moda do corte e da costura insistir na naturalidade dos artifícios são os tacos comuns das pessoas que desejam ser amadas a escolha das cores dos padrões das qualidades o acordo da estética consensuada do estilo da temporada a roupa desenhada nos sonhos impecável no tecido e no feitio do corpo a melhoria incorporada à ênfase dos detalhes na trajetória dos sentidos em alerta o desempenho das emendas dos pontos e rendilhados a geometria aderente dos atritos e leniências justapostas - algum enigma para ser decifrado, momentaneamente? as cavidades e os ressaltos e as lisuras o que mais se mostra ao esconder o perfume virtual da mais remota proximidade ora pois quem assim se expõe à dubiedade do olhar alheio (a mulher!? o homem?!) é afinal de contas muito cristão na objetiva espontaneidade de amar ao próximo como a si mesmo (há melhor maneira de amar do que oferecer os préstimos da graça, a ventura dos desejos acenados?) em todo caso pelo menos é uma tentativa afeiçoada de sorte e postura de dar ao amor-próprio a almejada elegância dos ícones da beleza das prolongadas aparências tudo em nome das etiquetas do amor um tanto avoado outro tanto sincero tudo isso e o prazer também através do sacrifício dietético e da educação física, duas atitudes que visam afinal de contas uma possível aura de espiritualidade.

quarta-feira, março 14, 2007

MUITO LONGE, AQUI MESMO

Fragmento de um romance inédito, em versos, “Barra Funda – a Evaporação dos Paradigmas”

A conversa fiada fragmenta-se na sala de jogos “eu não sou daqui”, alguém diz em voz alta a pausa ressalta o choque das bolas de sinuca “sou lá do brejo”, diz no mesmo tom a voz que gosta de uma boa pausa no meio das palavras “estou aqui é enxugando”, arremata o sinuqueiro a tacada certa de uma em todas as bolas da mesa. Viver é falar e ouvir a linguagem é uma casa de morar. Como farei para consertar minha psique bem longe daqui, daqui a algum tempo? Queria ver o técnico dos projetos em andamento padronizar a complexidade do porvir! O que vou fazer de mim com tanto peso nas costas e no peito? Como aguentar tantas dores ao mesmo tempo, ó meu deus dos instantes de exceção?! AS MULHERES, SEUS VERSOS A vontade cria o impossível e depois chora aos pés dele. enquanto vemos onde está a perfeição vemos a inexistência dos caminhos para alcançá-la. A harmonia noturna (até parece uma lição de Jung) refere-se à interação dos opostos na pugna diurna. Até mesmo a burrice tem o seu encanto, e a ruindade o seu mistério. A sujeira vermelha dos lábios tão puros Os seios de mel do pensamento: a mulher!, o florilégio dos eventos multidimensionais. Ana Cristina César, entre os complementos o gato era um dia imaginado nas palavras. .Dora Tavares, uma tenda para instalar suas maneiras. Heloisa Maranhão, as moradias séptimas esta velha é um pássaro. Henriqueta Lisboa, ave poesia duas gotas de orvalho num bemol. Lacyr Schettino, oh flor obsessiva foi sem antes, e deslembrada. Laís Corrêa de Araújo, luz de uma água sabes da vida a mansa cor? Lara de Lemos, adaga lavrada retomo-te em meus dentes e prossigo. Leonor Vieira-Motta, tudo de bom! melhor ainda fazer das pessoas poemas. Lélia Coelho Frota, alados idílios entre as duas transidas luas. Maria Esther Maciel, a sina de mulher e te senti no além de meu desejo. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti os azuis se abraçam nos horizontes. Maria Tereza Horta, as nossas madrugadas e possuíres de mim o que não sabes. Renata Pallotini, de cavaquinho a guitarra envelhecias, forma empedernida. Oga Savary, a noite dessa tarde solidão, então me invento. Regina Célia Colônia, sonha que o sol de fora é o de dentro. Terezinha Alves Pereira, persiana de flores meu senhor de olhar de espumas. Hilda Hilst, pensei subidas onde não havia rastros. Yeda Prates Bernis, na carta guardada sempre murmura o silêncio. Stela Leonardos e nas veias vivos veios. Clevane Pessoa, miríades de bolhas mínimas, pomares de frutos ignotos. Adriana Versiani, um dia a alma distorcida dos espelhos. Luciana Tonelli, especializar em ver olhares. Leila Miccolis, o amor que dura pouco, por toda vida Sou da floresta o mistério a clareira. Astrid Cabral, no preamar do meu sonho Quando eu dizia amor um oceano desatava. Adélia Prado, as fainas da viuvez trabalham uma horta nova. Ana Caetano, a textura do deserto da palavra eu.

A VIDA BREVE, A MORTE APRESSADA

De Alguns Poetas Clássicos Brasileiros. 

Sabemos que o romantismo é a utopia que encontra seu entrave no realismo e fica entre dois itinerários antagônicos: o retorno da infância e o desejo da morte. Para os românticos a eternidade está sempre muito perto, os círios são evocados em vez das estrelas. Castro Alves chega a falar no “sono sob a laje fria” e também no pasto de larvas errantes nos fundos sepulcros. Assim o período clássico da poesia brasileira ficou marcado pela contradição do vislumbre do sublime e o presságio da fatalidade – e muitas vezes os poetas falavam diretamente à Indesejada das Gentes aos brados e exclamações, ojerizas e reclamações. No bojo da história de nossa literatura, atravessando fases, estilos e escolas do barroco de Gregório de Mattos ao pré-modernismo de Augusto dos Anjos, passando nas interseções do arcadismo, do parnasianismo e do simbolismo, deixando em seus registros gráficos o florilégio das vivências e evocações, dos testemunhos e instantâneos que se eternizam constantemente no céu das aspirações e dos encantamentos repassados de sobressaltos e fixações, os nossos poetas, em perpétuo transe, confinavam-se à avareza da expectativa da vida minguada daqueles tempos românticos. Gonçalves Dias (1823-1864) viveu apenas 41 anos de penas e desilusões (em 1844, retornando de Portugal, após bacharelar-se, conheceu Anna Amélia Ferreira do Valle, por quem se apaixonou, a quem em 1851 pediu a mão, prontamente recusada pelos pais dela). Alvarenga Peixoto (1744-1792), viveu um pouco mais: 48 anos. Outros não lograram mais tempo: Álvares de Azevedo (1831-1852): 21 anos. Junqueira Freire (1832-1855): 23. Casemiro de Abreu (1839-1860): 21 anos ( o Mário de Oliveira, poeta e amigo, do Rio de Janeiro, está escrevendo sua biografia e já conta com mais de mil páginas digitadas). Castro Alves (1847-1871): 24 anos,dos quais legou-nos alentada e propícia obra poética. Outros viveram um pouco mais, mesmo assim menos que a expectativa de vida dos anos que hoje correm, um tanto apocalípticos, outro tanto surrealistas. Fagundes Varela (1841-1875): 34 anos martirizados pela marginalidade social. Cruz e Souza (1861-1898): 36 anos crucificado pelo preconceito racial. Alphonsus Guimarães (1870-1921): 51 anos (o mais longevo de todos que citamos, nascido em Mariana e vivido em Conceição do Mato Dentro, bafejado pelo enluarado silêncio dos anjos da mais santa mineiridade). Pedro Kilkerry (1885-1917), também tuberculoso – e rigorosamente inédito. Augusto dos Anjos (1884-1914), morto aos 30 anos, de pneumonia dupla, na cidade mineira de Leopoldina, Zona da Mata. Mas se de tudo fica um pouco, como afirma o nosso bem vivido Carlos Drummond de Andrade, de alguns ficaram polpudas, generosas doações estéticas. Gregório de Mattos amava tanto a vida, a ponto de versejar”se a beleza hei de ver para matar-me, antes,olhos, cegueis, do que eu perder-me”. Emuitas vezes ele culpa a si mesmo pelos dissabores: “Carregando de mim mesmo ando no mundo, e o grande peso embarga-me as passadas, que como ando por vias desusadas, faço o peso crescer, e vou-me ao fundo”.... E já em meados do século 18,outro poeta, Basílio da Gama, se penalizava: “Fiquei sentindo a dor que n’alma tinha. Eu cada vez mais firme, ela mais bela; Não se lembra mais ela de que foi minha, Eu ainda me lembro que sou dela”. E a musicalidade dos poemas de Gonçalves Dias e Casemiro de Abreu? Seus poemas nem precisam de partituras e arranjos: cantam no ar, como os passarinhos. E as obras primas de Álvares de Azevedo (“pálida à luz da lâmpada sombria”), de Casemiro de Abreu (“minha alma é triste como a rola”). E assim por diante. Cada poema abre uma paisagem cheia de vida, abre e entra, cintila e divaga. No sonho e na realidade da vida. E a morte espreitando.

IDÉIAS AO VENTO

A curva é boa porque faz de conta que volta mas não volta. A vida é boa quando a linha corta, mas vai ver e não está morta. Passando desenvolta a corda dos braços por meu pescoço, como diria Raduan Nassar, que acrescenta literalmente: “as unhas que ela punha nas palavras” são dentes escovados para morder o coração das idéias? É preciso ter chaves especiais para saber abrir, para abrir as portas do céu que ela tem em si!: (quem teve um dia a felicidade de dizer-me assim, numa esquecida leitura literária?). O orgasmo, alguém não lembrado repete, sem aspas: é quando as centelhas do fervor espiritual regressam à alma apaixonada e brilham sem parar. O sabiá cantava naquela moita silenciosa, subitamente eriçada, no doce sítio do amor enfim acordado. A sede da sede da doce apetência, como diria Federico Andahazi, a conífera geometria de tantas floradas nos campos e serras dos sucos seminais.... Como processar as idéias gerais em busca de uma síntese pragmática? Abaixo o pragmatismo!

PEQUENA FOTO DA AMADA

Caixinha de música no bolso: o perfume tecendo imaginações, os posicionais desenhos dos tecidos, dois sussurros nas covinhas do queixo, duas estrofes nas sardinhas da maçã do rosto. Dois olhos de andorinhas, encimados por cabelos densamente florestais. Só mesmo na juventude pode a eleita dos serafins ser um doce de maçã assim.

segunda-feira, março 12, 2007

AMOR E DOR EM MANUEL MARIA DE BOCAGE

Só mesmo em São Paulo, no Sebo do Messias (Praça da Catedral da Sé), que eu poderia encontrar a raridade que é o livro “Poesia de Bocage”, edição de 1950, da Livraria Sá da Costa, Lisboa. Eu sabia pouco do lado poético do Bocage e muito do humorístico (mais lendário que verídico), responsável por gostosas gargalhadas de muita gente até os dias de hoje. São piadas geralmente personificadas pelo rei, a rainha e ele, com as suas trapalhadas. Uma vez seu cavalinho baio sumiu e ele cansou de procurar nas quinze bandas das redondezas, quando então subiu nas grimpas da árvore mais alta para avistar mais longe. Nisso o rei e a rainha, ambos cavalgando, apearam-se na sombra da árvore, para refestelarem um pouco. A rainha mais que depressa suspendeu a longa saia rodada para urinar, e o rei, embevecido, suspirou e disse, diante da sedutora provocação: “Ah, desta vez vi o mundo todo!” Ao ouvir, lá de cima, a exclamação, Bocage prontamente interferiu, em voz alta: “E o senhor por acaso não viu onde está escondido meu cavalinho baio?” Piadas à parte, na verdade sua fama de poeta satírico só é sobrepujada pela de poeta romântico, cantor e joguete das mulheres inspiradoras da rima que para ele se resumia no díptico: amor/dor. O soneto da página 33 é uma verdadeira canção de viúvo: “Deploro, caro amigo, o que deploras Como porfiosa dor, com dor interna; perdeste a doce esposa, a sócia terna, que presente adoraste, e longe adoras. Mas pensa, quando gemes, quando choras, que por alto poder, que nos governa, ela habita do bem na estância eterna, e na estância do mal tu inda moras. Revê no coração, na fantasia a índole gentil, suave pura com que menos que o céu não merecia. Olha gozando a cinza escura; do corpo em que brilhava uma alma pia, é quase, é quase altar e sepultura!” Ele sabia animar e petrificar, ora suscitando as convulsões do raio, ora pateticamente agitando e comovendo: é o que diz dele Lord Beckford, que privou de sua convivência e para quem ele era “a criatura mais extravagante e mais original que Deus deitou no mundo”. A mente popular fixou-o como um tipo de rua, uma espécie de bobo, chocaneiro, vergonhoso: Olavo Bilac revolta-se contra tal fato e logo outros intelectuais o seguiram. Mas “é verdade que malbaratava seu talento devido a seu esfuziante improviso de chistes”, diz Guerreiro Murta, no prefácio. Artífice do verso, banhado em luz de vários climas, a rir da pompa das estátuas: “para os coevos fostes o turbulento”, festeja-o num soneto o arguto e sóbrio Felinto de Almeida. “Ó amor detém a foice da morte!”, ele rogava, pois para matar o poeta. “bastam seus furores” (os furores lá dele, Bocage). A lânguida ternura da doce amada cativa-o, mas nunca o faz mais ditoso. Sua poesia é uma súmula descritiva-narrativa de seu calvário romântico: os copiosos sonetos mencionam à exaustão e intensamente os ingredientes que mais afloram à sensibilidade predisposta: a ingratidão, o ciúme, a discórdia, a mordacidade, a morte, o desengano, a saudade, a solidão, a lágrima, a desventura, o desespero, todos os presságios, as dores e os ressentimentos que acompanham o amor no débil, instável coração do poeta aluado, absorvido de tal maneira pelas reclamações da alma e do corpo (fortuna e ônus da sexualidade embutida e reprimida), que ao leitor atento só resta constatar que de tanto amar e sofrer, ele nem tinha tempo para viver, fazer e recuperar o que perdia constantemente, sofrendo. Era na vida prática um galanteador barato, mais vítima do que algoz? Amava todas as mulheres e por isso não podia ser amado fielmente por nenhuma delas? (estou até propenso, na oportunidade, a glosar Fernando Pessoa e dizer que amar é preciso e que viver não é preciso). Ele amava ao sabor das circunstâncias – e assim vivia estrepado, golpeado pelas ciclópicas setas de Cupido. Original e extravagante, a extravasar os chistes dos improvisos, as espumas do sarcasmo, seu coração tudo sentia e exprimia. Bocage é desses poetas de tempo integral, totalmente assumido por honra da causa, pateticamente exposto ao declarar-se vassalo da musas, sempre a falar, pensar e escrever tão somente em versos, exímio equilibrista das cercanias do Olimpo e do Parnaso, instintivo ritmista da intimidade pública (se assim se pode dizer), rimando e metrificando qualquer assunto que para nós, simples mortais, não mereceria mais do que dois ou três dedos de prosa. Ele fala como se escrevesse e escreve como se falasse, diuturnamente versificando os sentimentos e os pensamentos em sonetos, idílios, odes, elegias, cantatas, cantos, canções, cançonetas, quadras e motes e glosas; epístolas, sátiras, epigramas e fábulas – a vida inteira amargando exílios e gorados amores. Que Deus o tenha.

sexta-feira, março 09, 2007

PARÁFRASE DE UM SONETO DE PETRARCA

O afortunado chão que a senhora Passando de manhã, comprime, na leveza; As margens que aprovam seus belos pensamentos E guardam de seus olhares a proximidade; As árvores e as casas e as pessoas São pálidos sonhos de sua realidade; O sol a nascer vai percorrer o zodíaco E enfeitá-la mais de nobres grandezas; Ó manhã dos caminhos, ó rio dos mergulhos! Que banhais o rosto dela com os olhos dela E aprendeis com ela um brilho mais vivo Que o das pedras ensolaradas, que sentem A emoção de meu silêncio, que não sabem Como invejo esse chão e aquelas margens!

CANÇÃO DOS DEZ NEGRINHOS

Paráfrase de Um Soneto de Petrarca

“Ten little nigger boys”, “Dix petit négrillone”, “Zehn Kleine Neger”, é assim que a estória dos dez negrinhos (do folclore universal), é repassada em várias línguas, citada por Guimarães Rosa no livro “Tutaméia”. Ele diz que “tentativamente” adaptou as estrofes, duas as quais (as primeiras) transcrevo abaixo. As demais são tentativas minhas. O leitor também pode tentar sua adaptação, exercitando-se nesse jogo dos mágicos sistemas de pensar. 

“Eram dez negrinhos dos que brincam quando chove. Um se derreteu na chuva ficaram só nove. Eram nove negrinhos. Comeram muito biscoito. Um tomou indigestão ficaram só oito”. 

Eram oito negrinhos dos que dançam belisquete. Um foi dançar o samba ficaram só sete. Eram sete negrinhos montados no burrinho pedrês. Um caiu de borco ficaram só seis. Eram seis negrinhos correndo atrás de um pinto. Veio a galinha maternal ficaram só cinco. Eram cinco negrinhos infensos a falsos boatos. Veio a cabra da peste ficaram só quatro. Eram quatro negrinhos contando os dias do mês. O dia de um chegou ficaram só três. Eram três negrinhos desses que dormem depois. Um dormiu para sempre ficaram só dois. Eram dois negrinhos barulhentos chamados Zum e Zum. Foram ao velório do rei e só voltou um. Esse um negrinho é o negrinho Um. Hoje é um negrinho amanhã será nenhum.

Canção dos Dez Negrinhos

CANÇÃO DOS DEZ NEGRINHOS - Lázaro Barreto.

“Tem little Nigger bpys”, “Dix Petit négrillone”, “Zehn Kleine Neger”, é assim que a estória dos dez negrinhos (do folclore universal), é repassada em várias línguas, citada por Guimarães Rosa no livro “Tutaméia”. Ele diz que “tentativamente” adaptou as estrofes, duas as quais (as primeiras) transcrevo abaixo. As demais são tentativas minhas. O leitor também pode tentar sua adaptação, exercitando-se nesse jogo dos mágicos sistemas de pensar.

“Eram dez negrinhos
dos que brincam quando chove.
Um se derreteu na chuva
ficaram só nove.

Eram nove negrinhos.
Comeram muito biscoito.
Um tomou indigestão
ficaram só oito”.

Eram oito negrinhos
dos que dançam belisquete.
Um foi dançar o samba
ficaram só sete.

Eram sete negrinhos
montados no burrinho pedrês.
Um caiu de borco
ficaram só seis.

Eram seis negrinhos
correndo atrás de um pinto.
Veio a galinha maternal
ficaram só cinco.

Eram cinco negrinhos
infensos a falsos boatos.
Veio a cabra da peste
ficaram só quatro.

Eram quatro negrinhos
contando os dias do mês.
O dia de um chegou
ficaram só três.

Eram três negrinhos
desses que dormem depois.
Um dormiu para sempre
ficaram só dois.

Eram dois negrinhos barulhentos
chamados Zum e Zum.
Foram ao velório do rei
e só voltou um.

Esse um negrinho
é o negrinho Um.
Hoje é um negrinho
amanhã será nenhum.

quinta-feira, março 08, 2007

MULHER

MULHER, PAÍS ESTRANHO? - Lázaro Barreto.


Uns chamam de facécia, outros de metáfora, o fato é que as figurações tropológicas do Velho Testamento a respeito das histórias da criação do ser humano (a mulher saindo da costela do homem) e da maçã de nossa eterna condenação, são muito propagadas e debatidas. A contrapartida tropológica está sempre a se manifestar, alegando principalmente que quem nasceu primeiro foi a mulher, da qual todo homem nasce, desde sempre. A revista VEJA desta semana estampa a bela e concisa reportagem de capa sobre a questão, sob o título “Enfim a Ciência Entendeu a MULHER”, na qual, além de citar o livro da cardiologista americana Marianne Legato, “A Costela de Eva”, revela inúmeras constatações científicas. Entre as quais pinço as seguintes:
- Na mulher as conexões entre os neurônios são mais numerosas;
- a visão periférica da mulher é melhor do que a do homem;
- o olfato é mais aguçado;
- a capacidade respiratória é maior;
- o coração do homem é maior, mas o batimento cardíaco na mulher é mais rápido;
- a adiposidade na mulher se concentra mais nos quadris, glúteos, coxas e braços – e no homem no abdomen e nas costas;
- na mulher o vício do tabagismo é mais psicológico do que químico;
- a maior incidência de depressão na mulher é uma questão meramente cultural;
- as mulheres são mais falantes porque possuem mais regiões cerebrais relacionadas à linguagem verbal;
- as mulheres captam mais detalhes porque mesmo em repouso 90% de seu cérebro permanece em atividade – e no masculino apenas 70%.
A reportagem, fartamente ilustrada, e assim melhormente legível, é de Karina Pastore e Paula Neiva.

Do livro “QUE É A MULHER”, de Seymour M. Farber e Roger H.L. Wilson, tradução de Sylvia Salles Oliveira Jatobá (Fundo de Cultura, RJ, 1963), que li em 1970, transcrevo outras constatações da época, a seguir:

“Existe uma diferença endócrina e metabólica sutil entre os meninos e as meninas, desde antes do nascimento até a vida adulta. A menina desenvolve-se mais rapidamente do que o menino, tanto física como mentalmente. Na idade da puberdade a menina está aproximadamente um ano à frente do menino da mesma idade”. A partir daí é que a influência cultural da sociedade inverte os papéis, priorizando a ascendência física e mental do homem, tudo a favor da hegemonia machista que tanto acirra a repulsa das feministas, com toda razão, até os dias de hoje.

- Em 1958, num simpósio do Instituto de Pesquisas Fels, lançou-se a indagação: “que espécie de histórico de desenvolvimento é necessário para fazer de uma menina uma pessoa intelectual?” A resposta foi: “O modo mais simples de colocar a questão é que ela precisa ser uma traquinas em certa época de sua infância”.

Em 1781, Emanuel Kant, “em uma das maiores conquistas intelectuais da História (...),
demonstra o assombroso papel da subjetividade na nossa concepção do cosmo externo”, valorizando uma virtude feminina intrínseca, até então aleatoriamente subalterna à objetividade, um traço de caráter imposto mais ao homem do que à mulher. Assim, na poesia, ela dizia na voz de Edna St. Vincent Millay:
“Sei muito bem que sou, para o teu coração,
não as quatro estações, mas apenas o verão”.
E na voz masculina de E.E. Cummings:
“Ela, a de lábios frágeis e profundos
que pisaram com suaves pés de abril
nos ásperos desertos de minha alma”.

- Condenadas a uma longa abstenção da sexualidade, elas são forçadas ao apego da fantasia, e quando resolvem desfazer as conexões assim formadas na mente, tornam-se psiquicamente impotentes, ou seja, frias, quando as atividades se tornam permitidas. É claro que essa situação já mudou nas áreas em que a emancipação feminina efetivou-se.

O livro é massudo (quase trezentas páginas), legível, explicativo, contendo o que de melhor se podia levantar, na data da publicação, sobre o tema, eterna e universalmente propalado do eterno feminino, tão bem expresso pelo poeta Coventry Patmore:
“A mulher – país estranho
Onde , embora chegue jovem,
O homem jamais compreende
Costumes, língua e política.”

segunda-feira, março 05, 2007

SOB UM POSTE DE LUZ (*)

Seus olhos deliciosamente verdes (lá uma vez ou outra, negros no semblante consentido e castanhos na volta do dia mais comum), mais azuis no flerte, levando-me dentro de suas vestes em fogo. Em frente à casa de seus pais, sob à luz do poste de aroeira, onde até hoje você está, imortalizada na doce guerra de nossos olhares. Alguém apaga a luz do alpendre de sua casa para avisar que nosso idílio chegava ao fim? Apesar da vontade de ficar, eu disse adeus, já envolto na névoa das outras noites que me alcançaram em todos os outros dias, para sempre. Para sempre? Sempre a reviver o longe-quase-perto, que nos aproximava debaixo da luz, no doce prélio das carícias, sempre a perguntar se um dia ela voltará ao saudoso ponto, sob a luz do poste de aroeira, mesmo se for com outra pessoa, pensando longamente em mim? 

(*) Adaptação da letra da canção “Lili Marlene”, de Hans Leips, musicada por Werner Muller e Marlene Dietrich.

domingo, março 04, 2007

IRONIA E HUMOR NA LITERATURA SEGUNDO LÉLIA PARREIRA DUARTE II

“A ironia romântica surge no final do século XVIII”, ela diz na pág. 141, como reação à vitória da burguesia, portadora do progresso e do pragmatismo. Aí o artista vê-se na encruzilhada: ou coloca-se a favor da nova ordem social, “contribuindo para a sua legitimação”, ou fica contra, “criticando-a, o que poderia significar seu suicídio em termos de reconhecimento estético”, impasse que ainda perdura e que abre o jogo das delicadas opções: se aderir, é engolido pelo sistema e perde as asas da imaginação; se contestar, é repelido pelo mesmo sistema e passa a voar com as asas machucadas. Uma forma de convivência mais ou menos eqüidistante é o recurso da utilização de uma forma de ação implícita das metáforas da ironia e do humorismo. A famosa ironia de Machado de Assis é esmiuçada por Lélia na filtragem de seus contos, nos quais não faltam os jogos de enganos e de espelhos, os movimentos de canto de boca, as perspectivas das chalaças, os ditos de duplos sentidos, as muitas piscadelas marotas do autor”. Através de tais artifícios, ele, Machado, desencandeia sua própria capacidade de enganar”, tornando crível (através de truques) a existência do inexistente (o recital musical sem um único som), e a instauração de um fabuloso acervo de ingredientes apropriados muito depois pelo surrealismo, como “a linguagem fônica dos insetos”, o pregão das mentiras vestidas de verdades, “Os narizes inchados substituídos por graciosos narizes metafísicos”. E assim, usando os condimentos do ilusionismo, o ser humano tenta e consegue “preencher o seu irremediável vazio”. E é assim que ela conclui que “um dos grandes recursos da literatura de todos os tempos é a ironia”. Quando fala de Guimarães Rosa , ela abre as páginas da obra dele como se fossem novas janelas. O leitor que julgava conhecer a obra rosiana, sente a existência de outros níveis, outras facetas, outras belezas na linguagem que se enreda no que conta, para se tornar, ela também, um conto envoltório, adjacente, como o prodígio enflorando o cerne de uma árvore. Entendemos, como leitor, que a obra do grande escritor nunca pode ser considerada “lida”, mas sim que numa estante pendente está sempre no estágio do “lendo”, tantas são as indicações que acompanham as dúvidas e afirmações. Textos que podem e devem ser lidos “como traduções ou como exercícios de metalinguagem que contam o que contar”, como ela afirma na página 286. “A oscilação de sentido ou a alternância entre pólos opostos” - é um dos recursos expressionais na ficcionalidade rosiana para revelar que o sertão, além da peculiaridade geográfica, é também um verdadeiro microcosmo, e o sertanejo é um ser múltiplo e contraditório, e não apenas um tipo humano comum, mostrando assim a impossibilidade de formulação de conceitos definitivos”, já que a tensão entre pólos opostos é permanente e irresolvível”. De tal modo que a vivência do personagem contamina o leitor e assim ambos se envolvem no encantamento do “clima de leveza que leva a aceitar a loucura ou a terceira margem, com sua falta de certezas e sua ilogicidade”. O tempo e o espaço, como elementos intercambiáveis (sob o ponto de vista de que cada um vive dentro do outro), interagem na dimensão rosiana da fusão história-geografia, de tal maneira que a autora fica muito à vontade ao associar os dizeres filosóficos da mais refinada cultura alemã (de Nietzche: “as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas”) aos dos sertanejos mineireiros, considerados em bloco pela pretensa sabedoria acadêmica como caipiras, capiaus, bobões. A literatura, segundo Almansi, “começa quando a palavra deixa de ser garantia de um pacto histórico ou de um acontecimento e prospera graças à malignidade e ao mal-entendido”. Em suma: o mal-entendido é o que pressupõe a literatura: o que não sabemos explicar aos outros e tentamos explicar a nós mesmos. Nas estórias de Rosa as vistas são de vários lados, já que “é impossível a visão simultânea, direta e total de todos os aspectos(...): há sempre algo elidido, subentendido ou apenas insinuado”. Lélia vai fundo em todos os planos da disquisição: sobe, desce e aplaina tanto na verticalidade como na horizontalidade do mundo rosiano, detendo-se em cada minúcia (dos contos e seus personagens), para melhormente alcançar a amplidão (o romance dos contos reunidos e o próprio grande sertão, do qual ele confessa que só viu e sentiu algumas de suas veredas). “A aceitação do incompreensível e do imponderável”, ela esclarece, é “que traz paz ao personagem Sorôco e aos que os seguem, entrando com ele naquela terceira margem”. Certamente a melhor parte da fortuna crítica de Guimarães Rosa é a que consta de três seminários internacionais (num dos quais tive a felicidade de participar) realizados na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, a PUC-Minas: “o primeiro em 1998, com 260 Comunicações de pesquisas e participantes de dez diferentes países; o segundo, em 2001, com 400 Pesquisas apresentadas e participantes vindos de 13 países; o terceiro com 446 Comunicações, de participantes vindos de 15 países”. O leitor pode facilmente imaginar como a bibliografia sobre a obra rosiana foi ampliada e a fortuna crítica enriquecida. Por modéstia, ela não assume o papel que desempenhou nesse trabalho monumental, que todos reconhecem, aplaudindo. O trabalho crítico de Lélia Parreira Duarte assemelha-se ao do Autor, que também se aproxima do papel de seus personagens. O nivelamento fica bem sugerido na análise que ela faz do conto “Cara-de-bronze”, onde o personagem, à certa altura, aguarda o amigo que foi buscar a poesia para “um interminável relato a fazer”. No pé da página (330), ela revela o que o leitor já esperava: “se a poesia não tem finalidade, não terá também um fim, um fechamento ou uma conclusão”. E assim outra revelação se evidencia, endereçando os poetas de todos os tempos e lugares a uma terra sempre virgem e infinita, que é ela mesma, a poesia, sempre aguardando os que acedem ao convite de assumir o possessivo e inesgotável amor à vida.

sábado, março 03, 2007

LENDO JUANA DE IBARBOURU

O corpo, árvore humana, como diria Ana de Noailles.´ É só estar no meio delas e sentir a disseminação da libido em todas as direções, nas quais as neuroses e fisionomias cansadas estão ausentes. Uma vez, no meio delas, senti-me ao vento e à chuva, como em casa em família, como bem diz Juana, sabendo que em outras vidas tive meus galhos de flores sentindo pendente de mim as folhas como dedos nas mãos trocando de roupas rotas e velhas por limpas e novas livrando-me da formiga vermelha do dia mais lento que morde as folhas dos minutos, como diria Juana de Ibarbouru. Depois, ora a lua, ora o sol na flor da água e do mato (peçonhas à parte): o amor que se faz a céu aberto os paus vivos digerindo o sal da terra doce as folhas abertas como flores glorificando a nobre função do orgasmo, como diria o nobre Wilhelm Reich.

RESERVAS ECOLÓGICAS DE DIVINOPOLIS

“Reservas ecológicas da cidade de Divinópolis: minuta de um projeto de lei.: Considerando que a topografia urbana de Divinópolis é de feição descontínua, formada de pequenas e sucessivas planuras e desníveis em todos os seus quadrantes; considerando que a profusa existência de desníveis do solo, principalmente nas áreas periféricas atualmente em processo de ocupação humana (residencial, comercial e industrial), forma no contexto dos loteamentos os redutos popularmente chamados de esbarrancados, grotas e barrancos; considerando que esses redutos ao longo do tempo são maltratados pela ação humana através da edificação clandestina de sub-moradias e também pela subtração de terra, areia, madeira, lenha e mudas de plantas ornamentais, concorrendo para o seu empobrecimento botânico e biológico; considerando que tais redutos, racionalmente preservados, configuram verdadeiros santuários ecológicos com seus habitats de espécies animais, vegetais e minerais, que concorrem saudavelmente para o equilíbrio ecológico regional, graças à produção de oxigênio e à manutenção da cadeia alimentar das espécies mencionadas; considerando que a não preservação desses redutos, através da depredação, da escavação, do desmatamento e do extermínio da vegetação rasteira, concorre diretamente para desencadear o processo de erosão e dos deslizamentos das encostas, que têm provocado tragédias e catástrofes em cidades e regiões que não protegeram tais redutos, o Poder Público Municipal DECRETA: Artigo Primeiro: Os terrenos inservíveis às edificações urbanas na cidade de Divinópolis, definidos nesta lei como grotas, esbarrancados e barrancos, relacionados no parágrafo único deste artigo, ficam definidos para efeito jurídico, preservados como reservas ecológicas urbanas. Parágrafo Único: Os terrenos citados com as respectivas localizações e áreas dimensionais, são os seguintes (relacionar as grotas e esbarrancados e barrancos, depois, é claro de um criterioso levantamento topográfico, com as respectivas dimensões e confrontações). Artigo Segundo: Os referidos terrenos passam a ser considerados, depois da aprovação desta Lei, bens de utilidade pública, para efeito de desapropriação legal e conseqüente incorporação ao Patrimônio Histórico, Artístico e Paisagístico do Município de Divinópolis. 

Adendo do autor da minuta, em 03/03/2007: os atuais detentores do poder público municipal (legislativo, executivo e judiciário), não estariam dispostos a pelo menos estudar o assunto, que pode ser, obviamente de muita utilidade pública, agora e sempre?

JOGOS PENSAMENTAIS (*)

Tinha vinte e quatro damas Todas a fazerem doces Veio o mal da moda nelas Não as deixou senão doze. Das dozes que me ficaram Mandei-as forrar de bronze Veio o velho das bragas largas Não me deixou senão onze. Das onze que me ficaram Mandei-as lavar os pés Veio o melro, molha o bico Não me deixou senão dez. Das dez que me ficaram Mandei-as forrar de cobre Veio o velho das bragas largas Não me deixou senão nove. Das nove que me ficaram Mandei-as fazer biscoito Veio o mal da moda nelas Não me deixou senão oito. Das oito que me ficaram Mandei-as passar rapé Veio o velho das bragas largas Não me deixou senão sete. Das sete que me ficaram Mandei-as aonde sabeis Veio o mal da moda nelas Não me ficou senão seis. Das seis que me ficaram Mandei-as ao vinho tinto Veio o melro, molha o bico Não me ficou senão cinco. Das cinco que me ficaram Mandei-as pesar tabaco Veio o velho das bragas largas Não me ficou senão quatro. Das quatro que me ficaram Mandei-as lá outra vez Veio o mal da moda nelas Não me deixou senão três. Das três que ficaram Mandei-as passear às ruas Veio o velho das bragas largas Não me ficaram senão duas. Das duas que me ficaram Mandei-as guisar perua Veio o mal da moda nelas Não me deixou senão uma. Desta uma que ficou Mandei-a enrestar cebolas Veio o tangoromando Carregou-me com elas todas. 

(*) Jogos pensamentais recolhidos nos Açores por Augusto Teixeira Freitas.