terça-feira, outubro 30, 2007

É O APOCALIPSE QUE BATE À PORTA?

Não, não é um dos contos de meu livro inédito, que versa sobre o mesmo tema. O que aqui alinho são notas que tentam mostrar que hoje, no Brasil, os absurdos sociais são tão comuns que chegam a desmoralizar a própria denominação. Políticos safados e corruptos são regra geral e não exceção como antes eram e que hoje ainda deveriam ser. Ainda agora, no escândalo do envenenamento do leite em quase todo o país (a virose que campeia na cidade não seria, também, uma conseqüência?), decidiu-se que em vez da ida de um fiscal ao local da produção dos alimentos, terão que ir três de uma vez, isso para diminuir o risco da fraude comprada e consentida. E ai fica a dúvida: quem garante que quem suborna um não subornará três? Parece que a perda de juízo, que antes era uma concessão que os desonestos genéticos se davam, hoje contamina, indistintamente, todas as classes sociais brasileiras, tendo como maestro condutor a própria cúpula governamental em todos os escalões, assim tão rasteiramente irmanados. Aumentar o prazo de validade dos alimentos através de soda cáustica (sic! argh!): era só o que faltava! A hedionda figura do ladrão mais infame e desumano (o do filme noir, execrado pela platéia de cinéfilos) está, hoje, colada ao homem comum da sociedade brasileira, com o passivo consentimento dos próprios amigos, parentes e da população? Era só o que faltava para irromper o clima apocalíptico do clamor dos inocentes (minoritários) e o ranger dos dentes dos culpados (majoritários). E ai estão as respostas da Natureza aos incêndios (provocados, ao que tudo indica, apenas para substituir ou anular o custo da mão de obra de um operário pela gratuidade de um pau de fósforo sob o veneno químico esparramado na vegetação. E a legislação, como fica no meio desse caos? Fica inerte, sofrendo o peso da culpa. Se hoje o pequeno agricultor não consegue o roceiro para cultivar suas terras, o que faz? Taca fogo nelas! E por que não consegue o trabalho do roceiro? Porque não encontra quem queira trabalhar sem a cobertura da lei trabalhista (e o aval terrorista do tal de mst) que a legislação impõe. É claro que a legislação é justa e necessária. Mas carecia de uma adaptação, para ser plenamente funcional. Fica, pois, o ponto de interrogação e a reticência, para preencher as brechas e corrigir os erros. Ou para alarmar ainda mais a paranóia vigente. Se o comunismo caiu de podre, o capitalismo, que sempre foi podre, está, agora, exagerando. A criança e o jovem, na falta de onde estudar e de onde trabalhar, submetem-se ao tacão do crime organizado; os adultos, na falta do que melhor fazer, submetem-se aos cantos de sereias do mesmo crime organizado - que começa, como a mídia está cansada de denunciar, na própria cúpula governamental, passa nos gabinetes dos prepostos e dos financistas e transige com seus visgos e esparrelhas da porca-miséria moral e física para assolar uma nacionalidade cada vez mais desmiolada. Haja Deus, pois. Os estudiosos da chegada (para ficar mesmo?) da chamada Sociedade Industrial, que reforçou o capitalismo, expurgando dele tantos vícios feudais, sentiram a inevitabilidade do componente publicitário no sucesso ideológico-pragmático da nova modernidade de controle dos seres humanos na ciranda planetária. Herbert Marcuse e tantos outros reforçaram a noção (hoje axiomática) de que a imagem vale mais do que a verdade, - e que a mensagem é que fica na mentalidade do consumidor (espúrio nome dados aos diluidores e detratores dos bens naturais em extinção), e que é nela (mensagem) que a classe dirigente tinha que investir. O resultado está bem aí ao alcance do entendimento de Deus e de Todo Mundo: a humanidade como barata tonta diante da reação, inegavelmente pré-apocalíptica da Natureza. Haja Deus, repetimos.

sábado, outubro 27, 2007

TEATROLOGO E POETA ANTÔNIO D. FRANCO

A mídia às vezes contempla com excessiva luminosidade os autores de época , badalados por tantos instrumentos de comunicação nos dias mais correntes e corriqueiros. E obscurece (esquece, por inoportunidade, de iluminar) os por assim dizer eternos contemporâneos. Revolve demais os vivos recentes sem atentar que os mais antigos, já cristalizados na história da civilização, são até mais importantes. Essa preferência midiática, incidindo na formação intelectual das novas gerações, instaura um contra-senso por causa da contaminação da apologia ou da angustia que cada época transmite, escancarando, assim, uma certa nocividade da influência. O culto da violência no cinema norte-americano, do nauseado existencialismo sartriano, do realismo fantástico latino-americano, da dialética do esquerdismo versus direitismo, cujos respaldos negligentes resultaram em tantas obstruções e retrocessos. Já a influência exercida por autores mais antigos, em sucessivas gerações não ocasiona os referidos malefícios, uma vez que toda a experiência já foi recalcada por muitas outras gerações ao longo do tempo e, agora, purificadas dos escolhos que enodoam as propalações culturais ainda imaturas. Sabemos que muitos autores famosos que bolinaram a angústia de sua contemporaneidade não conseguiram sobreviver na posteridade simplesmente porque suas obras continham abalos apenas contingentes, momentâneos, ao passo que as obras de autores consagrados pelo crivo dos anos permanecem na vivacidade (sempre moderna) porque seus legados vivenciais contem maior número de células de perenidade existencial. A ambientação das peças de Antônio Franco é fiel aos panos de boca e de fundo do palco instalado no planeta a partir dos anos 60 do século 20: o calor e o frio de uma espécie de rito de passagem propiciatório de novas feições comportamentais do ser humano mediante as novas inquisições, propostas e balbúrdias ideológicas. Na peça “Os Melhores Anos de Nossa Vida” o convívio é o das tertúlias metropolitanas de jovens apavorados com os novos e sucessivos estereótipos ideológicos da cultura multifacetada:o neo-realismo italiano, a nouvelle vague francesa, as contrafações pictóricas e musicais da arte pop e dos beatles, a contracultura dos hippies e andarilhos, um mundo em alternadas decomposição e recomposição, o diabo a quatro. Na outra peça do livro, “O Jardim das Margaridas”, sentimos o amadurecimento ou endurecimento de alguns dos personagens egressos da tertúlia anterior, agora vivendo no pequeno inferno do lar, remoendo os grãos da morbidez , acumulados no paiol das seguidas insatisfações existenciais. Tudo muito humano, sobremodo humano, como diria Nietzsche. Tudo escrito com a eximia acuidade que faz da ficção e da realidade o mesmo jogo do corpo e da mente. O filme “A Mão Esquerda de Deus” (um dos melhores que jamais vi) é mencionado, e também a técnica de suportar o insuportável, com a fala visceral de Verônica: “Eu não o abandonarei nunca, Morais! Você terá de me suportar, sabendo que apenas o suporto também. E a cada manhã, quando me olhar, saberá que tenho pensamento que nunca serão seus, nem para você. Sentindo que não suporto mais o toque de sua pele, seu jeito de andar, de falar, de respirar, o modo como penteia os cabelos. Serei o seu inferno e você, o meu inferno”. AMOR E PAIXÃO (*). o Poeta Antônio Domingos Franco irrompe do teatrólogo e do homem Antônio Domingos Franco assim de supetão, veemente e atencioso, descerrando a cortina, não do palco para o publico, mas do quarto mais íntimo para o mais confidente leitor. PÁSSARO NA JANELA é um canto difícil, uma confissão feita sob persuasiva pressão dos obsessores poéticos. Algo assim que se quer evitar, camuflar entre evasivas, mas que furtivamente escapole entre os dedos e da frestas e vai ganhando aceleração em queda livre até a decolagem do belo pássaro ao sol, libertário e cantante como a mais legítima voz da poesia. Parece uma história mal contada. Pois todo poeta percorre um longo e tortuoso caminho de provação e aprendizagem. E geralmente o que persevera é duro na queda, carne do pescoço, aprendeu tanto a sofrer que se tornou incólume ao sofrimento vulgar, está quase acima do bem e do mal.. Antônio D. Franco já nasceu sabendo,ou seja, quando quis escrever versos (sem as dores e as impertinências de quem não se sente seguro nem aprova os próprios escritos), escreveu sem titubear e sem desafinar. Parece uma história mal contada, a do teatrólogo que deu certo escrevendo versos. Seus versos estão aí no livro, fluíram direto do coração e do cérebro do poeta para as páginas em branco. Lendo-os de qualquer ponto de vista e de apoio, a gente não detecta neles nenhum esforço de parturiente, nenhuma elaboração formal, nenhuma martelação conceitual apriorística. Nasceram quase que espontaneamente do coração e do cérebro de um homem que, sem dúvida, tinha tudo em si mesmo (os prazeres do céu e as dores do inferno, conforme Blake,) para escrevê-los. PÁSSARO NA JANELA, uma apaixonante história de amor. Ou melhor: uma paixão convertida em poemas de amor, ainda intumescida das contundências e coágulos, ainda machucada, dolorida e inexcedível como toda paixão que sufoca e transcende o simples amor para tornar-se em dor quase trágica: toda canto poético. É isso mesmo. A beleza de uma paisagem natural às vezes é tão avassaladora que nos inebria o olhar, e nos fascina. Mas depois, onde pastavam meigos potros enluarados, vemos tigres ferozes e insondáveis. De repente o ar se crispa e não se sabe mais onde estamos, pois o amor revestiu-se de ódio e este galga os píncaros da paixão incandescente e explosiva. Então, só mesmo a poesia pode amansar de novo as feras loucas em litígio.O pássaro na janela canta tudo o que vê na casa ardente e no jardim romanesco.. (*) Texto que escrevi para uma espécie de prefácio do livro supracitado, em setembro de 1983, agora ligeiramente revisto.

quinta-feira, outubro 25, 2007

PEQUENO ELOGIO AO FREI BERNARDINO

Pálida homenagem ao nosso mestre de muitos anos. Texto inédito do livro também inédito “Minha Bela e Querida Divinópolis”, escrito em 1984. O título original é: TEMAS UNIVERSAIS DA CULTURA POPULAR. Dos setenta e tantos livros que compõem, até agora, a bibliografia de consulta da pesquisa que estou fazendo sobre a cultura popular do nordeste mineiro (uma região que abrange três municípios, trinta e tantos distritos e centenas de povoados rurais), o título que mais me prendeu foi “CATOLICISMO POPULAR E MUNDO RURAL”, do nosso erudito, hábil e paciencioso professor, escritor e frade Bernardino Leers, O.F.M. Um livro que figura na estante ao lado dos de Karl Mannheim, Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes, Mário de Andrade, Luiz da Câmara Cascudo e Renato Almeida. É isso mesmo: Bernardino Leers precisa ser descoberto pela intelectualidade e pela massa de leitores brasileiros. Ninguém melhor que ele entende do povo (devia ser o autor de cabeceira dos políticos) e sabe exprimir com elegância e autenticidade o nosso mundo em decomposição e nossa atribulada vida. Fui seu aluno no Curso de Ciências Sociais do INESP e me admirava tanto, na época, de como ele, em poucas palhetadas, levantava uma questão, descrevia, interpretava e suscitava toda uma constelação de fatos novos ao redor do assunto que estivesse em pauta. De repente a gente percebia que tinha tanta coisa para aprender e que as explicações eram até simples e como e porque a gente não tinha ciência delas antes. Agora percebo que ele, com sua obra, não apenas a escrita, mas também a vivida no dia-a-dia de seu ininterrupto exercício clerical, influencia toda a pastoral franciscana de Divinópolis, elevando-a ao equilíbrio da ética e da catequese, e influencia também o quadro docente da Faculdade, com a aplicação de uma metodologia de clareza, descortínio e visão dos princípios, meios e fins através da inteligência que raciocina em blocos e verticalmente. Influenciou a poesia inicial de Adélia Prado (parece até que estamos lendo-a, quando desfrutamos prazerosamente das páginas do Bernardino e deparamos, de repente, com a voz do povo em sua voz) e a forma e o conteúdo do trabalho posterior de centenas, milhares de alunos, que hoje são professores de sólida formação intelectual. Influência (é bom que se frise) no sentido de instaurar condições dialéticas propiciatórias ao levantamento de novas manifestações de um trabalho criativo desde há muito começado e que jamais terminará porque é a própria vida, eterna e universal, em suas diversas temporadas e caminhos. Para ilustrar nossa opinião, pinçaremos, abaixo, trechos de alta voltagem poética na prosa coloquial e requintada do referido livro dele. Como se fosse um poema de frases soltas de várias páginas do livro, que aqui se reunissem: “O mundo sagrado está dentro do mundo cotidiano: O intercâmbio é contínuo e frequente Entre a população do céu e do inferno E a população deste mundo f.d.p, como gritou o bêbado Para as estrelas da noite. Para tudo o que acontece é catolicismo, é Deus, É milagre, é desgraça, é promessa, é faz-mal, É castigo, é santo, é sorte, é o diabo. Nada tem existência isolada. Tudo está na roda Engrenada da constelação universal de Deus Onipresente. Um povo que anda léguas em romaria: Levar uma pedra na cabeça, Cumprir promessas pela cura do touro, Pendurar o santo na cisterna. Morrer de medo do capeta que joga pedras no telhado: Eis aí o numinoso universo dos camponeses. A alma que atrapalha o sono, A assombração na árvore que o bêbado enforcou. O raio que caiu e não matou ninguém. Deus é grande - e viva Santo Antônio! Os médicos salvaram a vida da menina: Tudo é milagre de Nossa Senhora. O pai mostra as mãos do recém-nascido e diz: “ Como Deus faz tudo bem feitinho”.

quarta-feira, outubro 24, 2007

JOSÉ APARECIDO DE OLIVEIRA

Numa das concorridas festas de aniversário do já saudoso jornalista, político e homem de bem, José Aparecido de Oliveira (que sempre, generosamente, me distinguia pelo mesmo convite que mandava, aos seus diletos amigos de toda parte), que eram em essência uma bela e caprichada confraternização entre os amigos da boa política, da boa literatura e do bom jornalismo brasileiro, tive o prazer de homenageá-lo pelos setentanos que então fazia, com uma tentativa de poema que está inédito até hoje (antes o Suplemento Literário do Minas Gerais solicitava e publicava meus textos. Hoje não solicita e quando mando não publica. Mudei eu ou mudou o jornal?). 

O poema que tem justamente o título “NA CASA DOS SETENTA – a José Aparecido de Oliveira”, ilustra agora a minha pálida mas sincera homenagem póstuma, nas linhas abaixo: 

Parabéns! O timbre e o vínculo da poesia nas dobras da política, da política nas obras da poesia; a fé que empunha a bandeira da lutada cidadania é a mesma que hasteia e desfralda as bandeiras da natureza e da civilização. Feliz Aniversário! O assédio da beleza, o abre-alas da verdade, o território enfeitado de hinos e caminhos; que pelo menos a água volte às minas para lavar o brio dos corações, não apenas no país das gerais, mas em todo continente; que as carrancas do Rio São Francisco conjurem as caretas dos ímpios, que tentam envenenar os mananciais sacralizados; que os mimos da sempre-viva nas campinas onímodas façam da companhia da força e da luz uma luminária das salvaguardas locais e nacionais; que o mestre da mineiridade receba de bom grado os abraços multiplicados de seus amigos.

terça-feira, outubro 23, 2007

POESIA E POLÍTICA

1 – Quem Tem Medo de Guimarães Rosa? Vamos lê-lo vagarosamente, como se aplicássemos conta-gotas nos olhos necessitados de colírio: - “Amar é querer se abraçar como o passaro que voa. - Espero a lua nova como o cão espera o dono. - Podia ser um carangueijo ou um coração. - O peixe sem rastros na água sem nenhuma memória. - O esquecimento é voluntária covardia. - Se todo animal inspira sempre ternura, que houve, então, com o homem? - O medo grande que de dia e de noite esvoaça, e que pousa na testa da rês como uma dor. - Também os defeitos dos outros são horríveis espelhos. - A queda do homem persiste, como a das cachoeiras. - Nós todos viemos do inferno; alguns ainda estão quentes de lá. - Os santos foram homens que alguma vez acordaram e andaram nos desertos de gelo. - Não ter medo: o mar não se destrói com nenhuma tempestade. - As velhas pedras influem, como os astros; mas só as árvores convivem com a terra impunemente. - A memória nem mesmo sabe andar de costas: o que ela quer é passar a olhar apenas para diante. - Aviso: as sombras todas se equivalem. - Só as pessoas não morrem, tornam a ficar encantadas. - Que vamos, que vamos, até os ponteiros estão afirmando. - Só na foz do rio é que se ouvem os murmúrios de todas as fontes. - Lá do céu caiu um cravo/ caiu uma rosa também;/ quem ama e tem saudades/ está à espera de alguém”. - A água que não teme os abismos: a grande incólume. - O bagre sempre tem as barbas de molho. - Em alguma treva – como os mariscos no rochedo – almas estarão secretando seus possíveis futuros corpos? 

2 – Quem Prefere o “Relaxe e Goza?”. O nepotismo brasileiro não é de hoje. O Presidente José Linhares, que governou poucos dias num dos intervalos da ditadura Vargas, nomeou tantos parentes que um dos assessores perguntou-lhe se não temia a opinião pública. E ele respondeu; “Não tenho medo da opinião pública, mas da opinião da família, tenho”. E foi assim que a moda pegou? A antipsiquiatria de Ronald D. Laing: “Num mundo em que os homens considerados normais mataram 100 milhões de seus irmãos nos últimos 50 anos, é difícil traçar uma linha definida entre saúde mental e loucura”. Dante remeteu ao nono círculo infernal, para padecerem eternamente imersos na pez fervente, os traidores do povo. Ou seja: as pessoas eleitas ou nomeadas para zelar pelo bem estar da população, que trocaram as mãos pelos pés, abraçando a orgia administrativa tão comum em todos os escalões dos o governos brasileiros, hoje em dia. Está no Canto XXII da Divina Comédia: “Ao som aterrador dos traseiros da decúria demoníaca, os traidores do povo dançam na negra cova da fervedura betuminosa, eternamente”. A morosidade da justiça é uma forma de anistia imerecida. A demora conduz ao esquecimento, que é o começo de um perdão imerecido. Vilões da historia brasileira que nunca me enganaram: D. Pedro I, Getulio Vargas, Médice, Magalhães Pinto, Ademar de Barros, Paulo Maluf, Eduardo Azeredo, José Sarney, Jader Barbalho, Fernando Collor, Renan (o que tem o olho maior que o bucho, como diria o roceiro se ainda existisse essa categoria de trabalhadores).

sábado, outubro 20, 2007

CORI-CORÁ

Nos antigos pagodes da velha (e sempre nova) Marilândia, era comum entremear as catiras e xotes com as modas caipiras e os desafios dos cantadores repentistas. Lembro-me de parte de um desafio da linha do tendepá, mais ou menos assim: “olelê, falou menino/ na linha do tendepá/ quero cocê me conta/ o que é cori-corá”. “Olelê, falou menino/ O que é cori-corá?/ É um cacho de banana/ começado a madurar”. “Na linha do tendepá/ quero cocê me conta/ contas pintas tem o gambá”. “Olelê, falou menino/ contas pintas tem o gambá:/ tem uma na ponta do rabo/ outra na volta da pá”. Era assim na nossa bela e querida terra da primeira (eterna!) infância. Os seus vastos quintais, pastos, capoeiras, invernadas, cerrados, fontes, córregos, lagos e rios. As flores e as frutas enxameadas em toda parte, principalmente nos quintais de todas as casas. No lá de casa, que transplantei para o de minha casa em Divinópolis, era um mundo cheio de vida e esplendor, verde e maduro. Vindo para Divinópolis em 1966, comprei uma casa perto do Rio Itapecerica (que naquela época era de água e não de esgoto como é hoje) de um antigo morador de Marilândia, de onde ele tinha trazido a vocação e a habilidade de cultivar o verde e o maduro da clorofila e da fotossíntese. De forma que o quintal bem amplo e úmido já ostentava suas dezenas de árvores decorativas e frutíferas. O que fiz no decorrer de todo esse tempo foi conservar e aumentar as espécies vegetais, propiciando a conservação e o aumento das espécies animais no reduto. À vontade em toda área convivem os gatos, cães, sapos, pererecas, minhocas, besouros, pássaros e mais pássaros (rolinhas, bentivis, sabiás, pardais, pombos): um contínuo festival de cores e sons, como se o próprio arvoredo cantasse e o ar fosse povoado de céleres e graciosos vôos de seres vivíssimos da silva. E tudo de acordo com as exigências e recomendações dos agentes da saúde pública. Mas outro dia uma senhora abordou-me na porta da rua, apavorada: “um bitelo dum gambá saiu aí do seu alpendre, deu uma volta na rua, e tornou a entrar no seu alpendre: quase morri de susto”. E mais assustada ela ficou ao perceber a minha naturalidade ao responder: “ele deve ter ido pro quintal”. “Mas o senhor permite uma coisa dessa?!”, ela perguntou, ainda espantada. E calmamente respondi: “Por que não? Ele é, como nós, um animal filho de Deus”. Aí ela arregalou os olhos, virou-me as costas, saindo. Entrei para dentro de casa, pensando que era o que faltava no quintal povoado de vegetação aérea e rasteira: um gambá! Para se ter uma idéia: o quintal comporta, com direito a sol e chuva e vento, três mangueiras monumentais, cujas grimpas ultrapassam as alturas dos prédios vizinhos, fartando de oxigenação toda a área do quarteirão. Ah o quintal. O quintal é o lado ameno da personalidade do morador, a ilha de copiosas meditações e augúrios equilibrados, a nesga verde, a frescura de um tempo incolor de indócil mormaço. Ao todo contém cerca de 30 árvores de mangas, jabuticabas, mamão, café, laranjas, mexericas, coquinhos, bananeiras de flores, cactus, goiabeiras, acerolas, romãs, buganvilhas, além de um enorme pé de mimo de vênus, outro de begônias, três moitas de cipó imbé, várias de avencas e samambaias, de palmas de Sana Rita, de cipós de São Jerônimo, orquídeas esganchadas em troncos de mangueiras, marias-senvergonha, camarões amarelos e vermelhos, moitas de taioba e a infinidade de capins e outras ramagens rasteiras. Uma suavidade orquestrada pela passarada, que suaviza o desgaste auditivo que vem das ruas barulhentas. Os pingos essenciais das folhas verdes umedecem a secura visual dos dias quentes do ar parado desse paranóico aquecimento global e refrescam e (de certa forma) depuram os ares noturnos tão poluídos pelas siderurgias desumanas e adjacentes. E assim o que brota do chão diuturno é o reflexo fantasioso das antigas noites estreladas marilandenses: vidas que se erguem, satisfatórias, confiadas, reluzentes no vergel multicolorido de um salutar proveito estético. Em suma, o quintal é o repouso infantil e jovial e senil e conjugal das melhores horas de nossa vida: a descontração do lazer, a ilha da vivacidade, o repasto reparador de tantas celeumas urbanas: uma ilha de bonança ao lado de ruas transgressoras da ordem social pela má vontade dos nossos dessemelhantes de má vontade.

sexta-feira, outubro 19, 2007

FALSO CORAÇÃO SOLITÁRIO

Estando outro dia, numa pequena hora vaga do fim de semana, tentando ler Baudelaire (sempre tão mal traduzido), senti novamente a proximidade de meu mestre imaginário, que sempre me socorre nos momentos mais dialéticos (e às vezes me procura para questionar suas proprias dúvidas, dialogar seus monólogos). Dois versos do instaurador do modernismo ficaram ressoando, na aceitável tradução de Edmundo Moniz: “Move na cidade a lama que a consome/ como o verme a roubar aquilo que se come”. Com Baudelaire a poesia veio do campo para a cidade. Como toda cidade é um pouco repelente, a poesia está sempre querendo regressar ao campo, que infelizmente agora está a sofrer o processo de decomposição, por escassês de oxigênio. Outros autores tentam retê-la entre os espigões de cimento armado, o asfalto irrespirável e o gás carbônico. O mestre imaginário falava da inutilidade de nosso esforço de levantar uma idéia idônea ou um ato gratúito. Tudo o que defendemos acaba dando meia-volta e quebrando nossa cara. Em sâ consciência não podemos votar em nenhum dos partidos existentes. Todos se nivelaram por baixo no fisiologismo – e todos seus eleitos continuam candidatos em plena e infinda campanha eleitoral. Não sabem fazer outra coisa na vida, os pobres coitados: só mamar nas tetas abundantes da pátria amada. Como chamar fulano ou beltrano de corrupto, nepotista, marajá, se todos (?) são farinha do mesmo saco e por isso o sentido pejorativo se reparte e desvanece na multidão dos políticos maleáveis? Nesse momento encontro o Tarquínio Caporal filando as manchetes do dia na banca de jornais. Ele me assedia com seus impropérios :puta-merda, esse cara é um vagabundo sem-vergonha, um filho da...! Assim chovendo no molhado repetia o segredo que todos sabem, que a vida não presta, não presta, meu Deus! Aí surgiu um cara que não me lembrei em que corpo já tinha visto, propondo a prioridade da chamada cultura do lixo, dizendo: “vocês sabem que as orelhas e o nariz das pessoas não param de crescer nem mesmo depois da morte?” Isso é coisa do Pasquim de muitos anos atrás, o dono da Banca disse.. Sem se dar por achado, o Cara prosseguiu: “Vocês sabem que numa cabana do Pólo Norte a água no ralo da pia gira da esquerda para a direita e não o contrário como a daqui?” E no silêncio da ignorância, ele aproveitou para mais acicatar: “Vocês sabem por que o peixe voador voa?” Essa é boa, alguém exclamou, rindo. “Ele voa porque não consegue peidar. Como não sabe ou não pode peidar, ele explodirá, se não voar”. Horas depois na sala de aula de ciências humanas, a mocinha pediu ao professor para explicar porque o crime organizado funciona muito melhor do que a sociedade organizada. Enquanto o professor pensava para responder, mil telefones de toda parte tocam ao mesmo tempo. Nisso o chato da cultura de lixo vem dizer que os cães zangados não atacam as pessoas nuas. Eu que sempre me considerei um coração solitário, um nota em falso, um problema social ambulante, lembrei-me de ter visto, numa viagem no tanque público de Curitiba a grande estrela de ferro na água límpida. Naquele tempo o monstro que devastava o país simbolizava o reinado nefasto de um monarca tirânico e pervertido. As crianças estão cada vez mais abandonadas, falava o professor, lá longe, e ninguém ouvia. A vida moderna com os seus modismos desarticulou o equilíbrio antropológico e a conceituação dos símbolos. Assim até mesmo o freudismo foi afetado, pois os exemplos que ele usava: a mitologia grega, as sagradas escrituras, perderam a unidade de sua validez cultural. Na verdade, na verdade eu lhes digo: como uma criança criada na creche, esse novo nome do lar, pode plantar e colher em si o tal do Complexo de Édipo?

quarta-feira, outubro 17, 2007

PALAVRAS! - Conto

No dia do casamento de sua primogênita, o fazendeiro Gonçalo Ferreira estava muito feliz, tinha movimentado as redondezas, reformado a sede da fazenda, pintado as paredes, trocado o forro, limpado o quintal e os regos, o curral e os pastos, enfeitado tudo (até as árvores da beira dos caminhos) com papel colorido amarrado em barbantes nos galhos das árvores e nos esteios das cercas de arame farpado. A casa estava exalando o odor da água de cheiro, bandejas de doces e quitandas, limonadas e cachaças em todas as mesas. O almoço começou às duas da tarde, prolongou-se noite adentro, farto, variado e apetitoso. Os convidados das quinzes bandas esparramaram-se nas partes internas e externas do casarão senhorial, comendo e bebendo aos poucos, interminavelmente. Um dos padrinhos discursou antes da cerimônia, no alpendre, enaltecendo as virtudes dos noivos e de seus respectivos pais. Só não mencionou o motivo da conveniência da união conjugal: as duas famílias eram muito ricas e ficavam, assim, ainda mais ricas. O pagode começou ao escurecer. Levantaram um toldo de folhas verdes de bananeiras e de coqueiros sobre a parte do curral, contígua ao alpendre, cimentaram a pista de dança e o ressalto para os tocadores de sanfona, violão, cavaquinho, pandeiro, bandolim e o jogo de colheres, bem ao lado dos cantadores de modas caipiras, xotes, emboladas e toadas rancheiras. Quando a noiva – que se chamava Joana – estava nos braços do noivo Norberto, depois da cerimônia do enlace, dançando na pista iluminada por dezenas de lampiões, ela sentiu-se um pouco só e sua mente abrigou uns turvos pensamentos: “Nunca mais poderei flertar esses moços bonitos, que agora me olham com tanto pesar. Nunca poderei ir nos lugares sozinha, nem falar bobagens aos montes como gosto de falar toda hora”. O noivo, por sua vez, pensava na promessa de fidelidade que fizera perante o vigário, as testemunhas e os convidados. Nunca mais poderia namorar aquelas moças bonitas que agora mandavam-lhe seus olhares maliciosos e não provocativos, anteriores. Elas se vingam de mim, vendo-me assim, aprisionado? Ele pensava, coçando pensativamente a cabeça. Lá pelas dez da noite cada um deles pilhou o outro em demorados e suspirosos flertes, ela com o rapaz viril e brioso do Arraial, ele com a moça mais faceira das quinzes bandas. Pilhados um pelo outro no flagrante acintoso, a reação foi instantânea e recíproca: dirigiram-se em amuado silêncio para os animais celados e amarrados em árvores do lado de fora do curral – e rumaram para a casa nova da Fazenda do Orvalho, mal respondendo às saudações e os bons votos dos parentes e amigos. Durante a viagem noturna conversaram, teimaram, gritaram, cada qual no seu cavalo trotando nos caminhos da noite escura. Quando chegaram ao curral da sede da fazenda, já brigavam aos gritos e ofensas do descontrole emocional de ambas as partes. Um gato que miava no terreiro ficou até escandalizado e saiu correndo, mesmo sem entender o que as falas zangadas diziam. Ela esbravejava antes de apear-se do cavalo: “NUNCA MAIS FALE COMIGO ASSIM, VIU? O QUE PENSA QUE É? O REI DO SERTÃO? SAIBA QUE O TEMPO DO MANDONISMO JÁ PASSOU!” E ele, descendo do arreio, prontamente deu o troco: “NUNCA MAIS FALAREI COM VOCÊ DE FORMA ALGUMA. MAS VOCÊ TAMBÉM NÃO FALA COMIGO NUNCA MAIS, VIU?!” E aí cada um se virou para desarreiar os cavalos, soltá-los no pasto e guardar a tralha no paiol. Dormiram na mesma cama sem se desejarem boa noite, amanheceram sem se desejarem bom dia. Viveram assim em silêncio um com o outro, anos e anos a fio, amaram-se muito nas longas noites da fazenda, algumas enluaradas, outras escuras, os sapos e grilos produzindo ao longe uma espécie de pano de fundo metafísico-musical para o enorme e silente amor deles. Fizeram modesta vida social nas redondezas rurais, recebendo de vez em quando os parentes e amigos, indo às missas mensais do Arraial, tudo assim sem alarde e efusões, sobretudo sem troca direta de palavras. Quando um tinha extrema necessidade de falar com o outro, falava indiretamente: chamava um dos filhos (tiveram onze nos quinze primeiros anos do casamento) falava indiretamente o que precisava, a outra parte entendia e se tivesse que responder, respondia falando da mesma forma indireta – e essa terceira pessoa podia ser um dos filhos ou das filhas ou até mesmo uma empregada ou empregado ou qualquer animal ou pássaro que estivesse perto na hora. Quando ela morreu de velha , numa tarde maio, depois de jogar milho às galinhas da janela que dava para o terreiro dos fundos, ele se entristeceu tanto e tanto que veio a faleceu três meses depois, depois de tomar uma chuva no mato e contrair pneumonia dupla. Tinha acabado de completar oitenta anos de vida.

terça-feira, outubro 16, 2007

MANIAS ESPECIAIS

Um filósofo francês (La Rochefoucald? Vou confirmar depois) disse que o que é bobo demais para ser dito, pode ser cantado. Estava prevendo a enxurrada dos nossos atuais pseudos caipiras e dos sócios-compositores de sambas-enredos do carnaval carioca? Ou prognosticava o modismo desbragado dos tais de tcham, rap e quejandos? Ah sei lá, deixa pra lá. Posso assegurar, no entanto, que na cultura verdadeiramente popular (não na encomendada especialmente pelas agências de turismo) o que era belo demais para ser dito em prosa era cantado em trova da mais lídima pureza. Exemplifiquemos: “Tomais esta chave verde/ para abrir esperança./ Abri e tornai a fechar/ Nosso amor com segurança.”O siri com o carangueijo/ brigaram, fizeram sangue./ O siri foi pra ressaca/ O carangueijo foi pro mangue”. “Lá de casa me mandaram/ um presente num canudo:/ uma velha descascada/ um velho com casaca e tudo”.”Eu plantei a sempre-viva./ A sempre-viva não nasceu./ Tomara que sempre viva/ O meu coração com o seu.” “No enterro da Raimunda/ foi aquela confusão./ Uma parte de seu corpo/ não coube no caixão”. A Trova Que Ilumina a Treva – frase da poeta Clevane Pessoa de Araújo, a quem dedico o rol abaixo em forma prosaica instintivamente versificável, todas populares, ou seja de autorias de representantes do povo brasileiro. Depois do parágrafo. “A bonina é flor da noite, só abre depois da tarde. É pelos olhos que se conhece quem ama com lealdade. Se eu soubesse quem tu eras, ou quem tu chegarias a ser, não te dava minha vida, que hoje vive a morrer. Pombinha, quando tu fores, escreva-me pelos caminhos. Se não achares papel, escreva nas asas dos passarinhos. Amanhã eu vou embora. Que me dão para levar? Se levo só penas e dores, como é que vou voltar? A barata diz que tem uma bela cama de marfim. É mentira da pobrezinha: a cama dela é de capim. Lá vem a lua saindo por cima dos laranjais. Olha bem, não é a lua: é o mapa de Minas Gerais. Cravo branco não me prendas, que não tenho quem me solte. Foste tu, meu cravo branco, que causou a minha morte? Alecrim da beira dágua, mangerona, poço fundo: a moça que quer casar, não namora todo mundo. Ó quê graça da menina que entrou neste salão. Parece uma beija-flor no pezinho de algodão. Menina, berço de rosa, galho de alecrim maduro: sinto que dentro do peito meu coração está seguro. Quem de mim tem raiva boba, que vá pro mato se foder. E que lá uive que nem cachorro, mas que não venha me morder. Eu vi minha mãe rezando aos pés da Virgem Maria. Era uma santa escutando o que a outra santa dizia. Subi no pé da roseira para ver se te avistava: cada rosa que se abria era um suspiro que eu dava. Lá no alto daquela serra tem um carneiro morto. Sabem do que ele morreu? Do coice de um gafanhoto. Minha gente venha ver uma coisa que nunca se viu: o tição brigou com a brasa e a panela de barro caiu. Ela é bonita como a rosa, ela cheira que nem jasmim. Ela é boa como a bondade, mas não tem pena de mim. Esta noite eu tive um sonho, que meu bem tinha morrido. Acordei muito assustado, já com outro bem no sentido. Rio abaixo, rio acima, lá vou na canoa furada, arriscando minha vida pruma coisinha de nada. Cada filho para a mãe é uma nova preocupação: a sorte deles é desigual como os dedos de cada mão. Quê dia negro e sombrio é o dia em que não te vejo. Mas se vens em noite escura, vejo o dia no teu beijo. Fui ao mar buscar laranjas, frutas que o mar não tem. Voltei de lá toda molhada com a onda que vai e vem. Fui ao Rio de Janeiro fazer queixa ao delegado, que o maldito trem de ferro, muita gente tem matado. O tatu é bicho manso, nunca mordeu em ninguém. Mesmo que queira morder, o tatu dente não tem. Um desejo, outro desejo. É sempre assim o viver. A nossa vida é um sonho, o acordar é que é morrer. Sá Mariquinha lá do alto da serrinha: nunca vi pomba de galo nem boceta de galinha. Menina dos olhos negros, que me deu água pra beber: não era sede, não era nada, era só vontade de te ver. Em cima do tronco seco, escrevi o nome teu. É tão lindo o teu nome que o tronco reverdeceu. Dizem que o cantar alivia as mágoas do coração. Eu canto e torno a cantar, mas as mágoas nunca se vão. Dentro do meu peito tem duas rolinhas chocando. Uma voou, foi s’embora, a outra ficou me matando. Sete e sete são quatorze, com mais sete, vinte e um. Todo mundo tem seu amor, só eu não tenho nenhum”. “Os teus dois peitinhos parecem, quando ela está deitada, dois montinhos que amanhecem, sem ter que haver madrugada” (Fernando Pessoa).”São vinte e quatro horas contadas, vinte e quatro horas que o dia tem. Ah, se ele tivesse vinte e sete, seriam mais três para te querer bem. Quando findou nosso noivado, a primavera quase me mata. Os rudes cascos de meu cavalo eram quatro soluços de prata” (Garcia Lorca). “A noite é cálida e longa, a insônia me atormenta. Na espera que se alonga meu desejo mais aumenta” (Amaryllis Schloenbach). A Mania de Ouvir. A voz por assim dizer carnal de Adriana Calcanhoto. A sedução das proeminências: e o indício das bochechas dos músculos das fofuras mamárias das farturas de ancas e coxas e maçãs de rosto – e a voz dando brilho e perfume aos lábios voluptuosos e aos dentes belamente irregulares; e a voz dando mais carnalidade ao espírito, do qual é a origem e a ressonância. É assim que um arranjo sambístico de Lupiscinio fica igual a uma ária de Puccinni. A Mania de Ler. As palavras são feitas posteriormente às coisas que se fazem, mas até que podem ser usadas prematuramente, antecipando os dizeres e os fazeres então apenas intuídos. A musicalidade latente, intacta e implícita nas páginas sempre escorreitas de Machado de Assis e de Henri James, como contas de prata na face do lago, flores de neve despencando da árvore de Natal, como diria Pedro Nava....Mas vamos e venhamos: também nas páginas e alvíssaras do romântico patriotismo de Bilac, Castro Alves, Gonçalves Dias, José de Alencar: nunca mais se repetiu tão sincero fervor, tão convicta disposição de imaculado otimismo. O modernismo de 22 veio enxovalhar? Não, não. Veio reciclar, expor o sentimento do mundo, divulgar a rosa do povo. E bate o bumbo e os pratos da nova (desafinada como a vida) orquestra sinfônica da realidade brasileira. Quem não gosta de ler? Só quem não recolhe suas arestas nem exprime seus afagos, só quem não gosta de si mesmo, quem não sabe primeiro monologar para depois dialogar. Só quem (ególatra, monomaníaco, megalomaníaco) julga saber mais que os outros e assim vive a propagar a própria ignorância. Não gostar de ler e deixar o Balzac e o João Cabral na estante e sair por aí a bebericar a fofocar, a contradizer os princípios de toda salubridade..., ah, essa pessoa vai ou vem com uma estrela na testa ostentando os dizeres do sapo jogado do céu dos animais: “Sai da frente, laje, senão te esborracho!”

segunda-feira, outubro 15, 2007

AS SEREIAS E OS DRAGÕES

Venho observando ao longo da vida que a contenda da Piedade (Poesia) com a Violência (Política) é repetitiva, incansável. Para retroagir apenas aos tempos pré-modernos, vemos o sanguinário Napoleão esfarelar o formoso legado enciclopedista de Rousseau e Voltaire. Depois, já nas manhãs do século vinte até às infelizes noites de nossos dias, pontificam as marcas dos revezes do paradoxo entre a idéia e a imagem, a teoria e a prática. Estamos ainda infestados de sangue, suor e lágrima das unhadas e dentadas dos gorilas e crocodilos, transparentes nas terríveis feições de Stalin, Lênin, Mao, Hitler, Mussolini, Franco, Salazar, Vargas, Perón, Pinochet, Prestes, Fidel, Guevara, Kennedy, Médici, Figueiredo, Golbery, Hussein, Buss (pai e filho), Bin Laden, Lula, PT e Quejandos. São os dragões das peripécias do bicho-homem, que se alimenta do próprio veneno contaminador. E quanto às sereias ideológicas supracitadas? Ah, meu Deus, infelizmente tenho que fechar os olhos e comprimir o coração para citar os belos e gloriosos nomes dos inocentes úteis chamados Marx, Gorki, Brecht, Graciliano, Frei Beto, Trotsky, Althusser, Henfil e o Irmão Betinho, os sociólogos de esquerda e tantos outros intelectuais bem intencionados, todos ignominiosamente traídos pelos gulosos oportunistas (gorilas e crocodilos) de plantão. Plantão do subsolo da tortura e do extermínio. E pensar que tantas vezes entoei loas às referidas sereias ideológicas, que ingenuamente municiaram as lâminas e os estampidos do terror “revolucionário” dos incontentáveis prepotentes. Que sempre ágeis e aptos passam da ilusão teórica (do idealismo que segundo Nietzsche não é uma cegueira, mas sim uma covardia) à prática premente e acachapante. Deus que me perdoe. Se o arrependimento matasse, ah, não estaria agora aqui para, mesmo de longe e timidamente, confessar meus balbucios de “mea culpa” no logro das convicções abalroadas: participar da fundação do diretório do pt ( grafia minúscula mesmo) local, votar e pedir votos três vezes (há uma frase feita na cultura popular que diz que errar “três vezes é sinal de merecer a forca”) a favor do presidente que não sabe de nada que acontece nem mesmo na sala ao lado de seu gabinete presidencial. Ah, mas pelo menos tenho desferido minhas diatribes aos que, abertamente convictos, professam e praticam não só a violência de ação (a empáfia das fraudes, a indecorosidade comportamental) como a violência de situação (o guloso apropriar-se dos bens materiais e imateriais, públicos e populares), de acordo com a espúria norma do arrivismo mais deslavado e impune do nosso cada vez mais empobrecido país. Empobrecido material e moralmente.

domingo, outubro 14, 2007

REMINISCÊNCIAS

1 – O Bruxo do Cosme Velho. O gosto que Machado de Assis tinha de escrever é o mesmo que temos de ler o que ele escreveu. “Deus, quando quer ser Dante”, ele diz, “é maior que Dante”. Ah, os vínculos perpétuos e divinos de certo cativeiro, como ele diria. Aos poucos ele vai chegando e entrando em nosso coração. Sem forçar a porta (sem arroubos ou frases de efeitos), ele acena de longe, aproxima sem ruídos e daí a pouco está com as sugestões e as minúcias do que antes eram incertezas e que agora são evidências instigadoras. 

2 – O que passa, o que fica. A desgraça (a falta de graça) da vida contemporânea torna-se cada vez mais aguda na medida em que a sociedade humana aliena a arte e a cultura de seu contexto. “As sociedades antigas”, diz Robert Kurz, “não tinham uma cultura do modo como se “tem” um objeto externo e casual, antes “eram” uma cultura”. “Hoje”, ele acrescenta, “as criações artísticas ou são ignoradas ou tornam-se como objetos de museu, já mortas antes de nascer”. A pessoa vai a um recital, a um concerto, a uma ópera, a um teatro, a uma biblioteca, encanta-se ou não com o que vê e sente nesses lugares, mas volta para casa sem levar o que viu e sentiu, volta desempregnado do que deveria ter enriquecido sua existência. Isso porque a pessoa volta para uma realidade mais constante, de outros valores, dissociada dos elementos da piedade e da transcendência, inerentes à significação estética da vida – que muito tem a ver com a arte e a cultura. O ser humano moderno está, pois, como que desencadernado espiritualmente? Alienado de seus bens primitivos? Valendo-se apenas de seus padrões biológicos, desistindo (ou postergando) do usofruto de seus indícios de nobreza autêntica? A palavra nobreza é aqui empregada no sentido do possível grau de perfeição comportamental que o ser humano tenha chegado sob o ponto de vista filosófico da moral, da religião e da poesia. “Se a arte não é mais capaz de refletir positivamente o todo cindido”, acentua Kurz, “”que o faça negativamente, ao elevar à consciência a precariedade estética do mundo “economicista”. 

3 – O que passa, o que fica. Atrás do morro tem morro. A terra é redonda, fácil de rodar. Todo ser vivente está sempre eqüidistante de um começo que não aconteceu e do fim que não acontecerá. Cada dia que passo na vida, estou indo para o passado, que é só meu e dorme comigo nas vinte e quatro horas de cada dia. A todo momento bato numa porta para entrar no Futuro, que sendo de Deus e de Todo Mundo, só será meu se levar o Passado comigo. Tristeza e mais Tristeza: nas campinas da infância já engordavam rezes para o abate. Os chamados das campinas e das colinas da infância, vem de longe comigo, para longe vão comigo. Preciso responder, preciso.

ENLEVO PASSAGEIRO

As árvores passam na janela do ônibus Ela dorme ao lado? O sono é aura Nele a ninfa Eco repete os cantos no vale O jovem Narciso repete as imagens no poço São as duas solidões do amor? Dormindo se inclina para defender-se De outros lumes Os braços encostam nas nuvens? A brasa refresca? O batom desmaia nos lábios? A luz que circunda O ventre aninhador Os cabelos acalmam O que se apóia, mais voa Que mal faz se me encostar? Que mal faço se a cantar?

PEQUENA TRÉGUA NO EXPEDIENTE

No inferno burocrático da agência bancária, os clientes aflitos na reles fila indiana, acompanham a faina dos funcionários no manuseio dos papeis que controlam as ações humanas. Lá fora um sol de rebentar mamonas derrete o tédio dos postes e das calçadas, o suor expele o estado de espírito dos operários, agora vergados nos canteiros de obras públicas. Dentro, o tinir inaudível das moedas, o cheiro forte das cédulas novinhas em folha. A inflação imposta solta os ratos no paiol: não há correção monetária que agüente. Assim torramos a paciência na fila extática, até que um dos cifrões desaparece na janela e a máquina de escrever pára de escrever. O que houve? Os andares de cima pegaram fogo? Os bárbaros invadem a Europa novamente decrépita? O infarto fulmina o Cabeção da classe dirigente? Ou foi a moeda que readquiriu o valor inerente? Num minuto descubro o que aconteceu: a moça que batia a tecla dos juros, ergueu-se, belíssima, entre as mesas do salão (a procura de um cadastro, uma minuta de ofício?), anda e coça (pensa que ninguém vê) a seda íntima de sua redondidade traseira, que inspira e atrai. E assim imprime novo ritmo aos movimentos dos interesses contraditórios das pessoas, e assim cita sem querer (seguidamente) a palavra AMOR. Quando volta dos armários verdes para o balcão, como se fosse o luar numa tarde de verão, ela é a idéia mais feliz da tarde na agência e sem querer e sem saber é a imagem que inventa nova forma de dizer, obliquamente, que a felicidade da terra nada tem a ver com a dinheirama da receita e da despesa.

sábado, outubro 13, 2007

A VELHA A FIAR - Conto

Carradas de dias, meses e anos, a perder de vista, vividos nos mínimos momentos da vigília que vai e volta da lucidez ao sono, ela estava sempre ali, sentada no banco tosco do cerne de peroba, do lado de fora do casarão, à sombra das magnólias, a cabecear e fitar as nesgas da rua, a mascar o fumo de rolo temperado na cinza do borralho. Eternamente ali, muito perto da alma, ela, a vovó de poucos netos, aninhada na lenta fluência das horas, a pensar em versos não necessariamente rimados e metrificados, mas encadeados em blocos temáticos: o da pena que voa no ar da tarde, a pedra de contornos ásperos fixada no chão gramado, o lapso do tempo imóvel no campo visual que amarra as pessoas diante das casas desalinhadas de uma rua partilhada de animais – verdes gravetos de um feixe às vezes lúcido na proximidade e enfumaçado nas distâncias. A noção do tempo a escoar em si mesmo, quando cada dia começa num mesmo dia que nunca acaba. Assim ela vivia em versos livres do estilete gráfico: desenhava pensativamente, falava e musicava como as flores do cipó de são caetano no muro, como a fumaça que evolui do fogo nos cachos secos das sementes de magnólia. E quando a borboleta voava nos ramos da folhagem, ela acompanhava a forma do movimento e da cor ali transbordantes no ar emanado das portas e janelas abertas das casas e da igreja na praça. Uma linha não silogística de palavras cabais então vincava em sua fronte o gosto da apreensão do momento fugidio. Assim podia seguir o pensamento, sem se cansar e sem esgotar o objeto da pensação contínua, fluídica e indolor. Quando o cavaleiro passava trotando para os fundos dos horizontes, ela alongava o olhar até à barra do ir e do voltar e, afortunadamente, não mais duvidava se o que ia era realmente o que vinha. A perspectiva eliminava a dimensão. Nem todos os gatos são pardos em todas as noites. O deleite da perfeição passa rápido. A angustia, quando vem para ficar, despista os tentáculos, a luz aumenta o sofrimento – o mundo é flexível. Ela comia o fubá afogado (que ela chamava de “papo suado”) e mascava fumo no intervalo das outras minguadas refeições. Gostava de tutu de feijão bem amanteigado, macarrão goela de pato, carne de porco refritada. Comia lentamente, saboreando as virtudes das lembranças, prolongando a degustação dos versos pensamentais, e nada dizia de si aos outros. Colhia os instantes, um a um e às vezes apertava nas mãos uma porção deles. Queria saber o que estava a falar o sabiá na laranjeira do quintal de seu casarão. Devia saber de muitas outras coisas outras coisas, por nós ignoradas. Uma chuva na tarde estival? Um entendimento da linguagem dos pássaros, dos cães e dos gatos? Nunca corri das coisas, mas elas sempre correm de mim, ela dizia a si mesma, na assumida impotência da abnegação. O livro depois de lido, o amor depois de amado – assim ficamos o resto da vida a lembrar que não os temos mais nas mãos e nos olhos, como se uma parte do corpo tivesse separado do corpo e repousasse ali ou além, nos outros mil lugares de guardar que a lembrança tem. Era muito bela em sua velhice, talvez mais bela do que quando vivia na infância, na juventude e na maturidade. Cada ruga do rosto, cada linha da mão e cada veia dos braços e pernas, rotos ou lisos, estão carregados de sentimentos, que remetem ao rosário de imagens dormindo em cada pálpebra, em cada ruga, em cada suspiro. Ninguém sabia das longidões de seu passado. Dizia-se vagamente que nascera na região da mantiqueira, que era filha de mineradores e aparentadas com velhos fidalgos imperiais. Que fora encontrada e trazida pelos tropeiros da época numa estrada deserta, nas imediações da nascente de um rio caudaloso. Ninguém sabia de sua mocidade sertaneja, dos dias e noites porventura passados em outros arraiais, a juntar os fiapos de recordações, a captar os sinais da estranheza e do mistério das nuvens do céu e das relvas do chão, a peneirar palavras ditas e ouvidas – só ela sabia de si mesma e nunca disse nada a ninguém. Devia ter refestelado alguma vez nos idos da mocidade formosa e triste – que assim eram as senhorinhas remotas, tão cuidadosas no resguardo da intimidade, sempre na defensiva de possíveis atropelos e desafinações. Ela só veio do Japão Grande para o Arraial do Desterro a fim de ter seu único filho e perder o marido na repetitiva noite dos tempos, chuvosos, mais líricos que dramáticos. No tempo interminável de sua viuvez, ela lia e lia os livros das nuvens, das relvas, das pessoas passageiras: transpirava e recalcava imagens e conceitos, formas e conteúdos, e assim refazia constantemente seus humildes e estáticos modos de ser. O marido estava, ainda agora, voltando do outro mundo? O amor, ela pensa, tempera-se com sal e rapadura: a amizade apenas com a rapadura;o ódio apenas com o sal. Toda história começa na amizade,deriva no amor e depois descamba na paixão ou no ódio. Mas a paixão – ai ela se lembra de um certo tempo de sua vida – é a doença que regenera a saúde. Todo santo dia ela viajava nas velhas carruagens, em remotas estradas de chão, e às vezes no ar dos passarinhos e dos pirilampos, livres de atropelos e prenhes de sonhos. Quando faleceu, depois de perder o movimento, perdeu a cor, a forma e o calor, alterando bruscamente a serenidade mais intima que sempre manteve vida afora, sentada na porta do velho casarão senhorial. Um dos netos abriu seus olhos, tentando negligentemente desvendar a obscuridade silenciosa e enigmática de seu desterro existencial. O que julgou ver foi ainda mais obscuro: o tempo imóvel num caminho no fundo das alturas, onde o que entendemos por alma adquire a forma de rosa virginal e purificada dos vestígios do mal e do bem, com o cerne tenro abrindo caminhos felizes de outras dilatadas pétalas. Ela versificava pensativamente, enquanto cochilava à luz mimética da tarde. O que para outra pessoa podia ser tédio, melancolia, passividade, morbidez, ela captava e transmitia com os bons modos de outro interesse e de outra conotação. Os valores como o tempo e o espaço perdiam a linearidade e a logicidade, moviam-se subjetivamente, sem impactos e gritaria de neófitos. Seu olhar paciente e reiterativo lia no galho da roseira os bilhetes dos anjos do mês de maio – a própria tarde era um livro de páginas de lenta e constante viração. Tudo estava escrito em toda parte, bastava dar-se ao trabalho de ler. Um dia leu a própria sorte num dos retalhos de azul entre as nuvens brancas e viu que estava escrito: “Deus não esqueceu dela nem dentro nem fora de casa... ela vive uma vez ou outra assediada pela dor e pelo asco, mas é certo como o sol que está luzindo (!) que ela uma vez ou outra entra pelo céu afora e compartilha dos prazeres de todos que são da casa de Nosso Senhor”. Se olhava todo dia o mesmo galho de bilosca, ia guardando as pequenas mutações do colorido, da vivacidade, dos hospedeiros e também as inclinações dos galhos e os outros detalhes posicionais. Em uma senhora de quase cem anos de idade, ela sentia que afundara todos os caminhos do tempo: milhares de luas novas e velhas já cabiam em suas algibeiras de algodão. Mesmo assim ela mantinha (ah, disso sou testemunha) no rosto o ar noviço e belo de uma quase mocinha, pouco mais e pouco menos que uma menina antiga e futura e feliz, ontem, hoje e sempre. Uma mocinha de muitos e muitos anos que vieram dos horizontes – e que agora para os mesmos acolhedores horizontes está voltando.

sexta-feira, outubro 12, 2007

CAMINHADA FÍSICA E MENTAL

Os músculos abdominais ligam-se ao peito, às oito costelas inferiores, ao ilíaco e pélvis, e assim sustentam e protegem o fígado, a vesícula biliar, o estômago, os intestinos, o pâncrea, o baço, a bexiga, os rins, as glândulas supra-renais e o sexo. As funções fisiológicas desses órgãos são conhecidas: digestão; produção e estocagem de bílis; formação do suco pancreático e insulina; metabolismo de lipídios, carboidratos e proteínas; acumulação de aminoácidos, ferro e vitaminas; manutenção do equilíbrio do ácido e da água: purificação do sangue; produção de proteínas, de plasmas e anti-corpos; produção e circulação na corrente sanguínea dos hormônios das glândulas endócrinas. Nas pessoas barrigudas, essa musculatura é frágil, o que as predispõe à comilança e à inatividade. O fortalecimento dos músculos abdominais, através do exercício físico, resulta numa maior pressão interna na cavidade abdominal-pélvica, corrigindo a obesidade e melhorando a saúde. Às vezes ele (que era eu mesmo) dizia cobras e lagartos do desmando do serviço público; às vezes apenas pensava se xingaria o carroceiro ou se entoava hinos ao burro de carga. Sempre nauseado dos últimos acontecimentos (a pilha interminável de crimes impunes e de escândalos capitalizados pela mídia), ele adivinhava o raciocínio pragmático do político atuante: por que não posso roubar se até Deus tirou uma costela do homem para fazer a mulher? Enquanto esticava as pernas e braços no Calçadão, ele (eu?) dava trela aos pensamentos. As atividades humanas recicladas após a introdução do automatismo tecnológico vieram enxamear de sintomas mórbidos a psique do trabalhador. O stress causado pela repetição dos movimentos automáticos, agravado pela tensão provocada pelo rígido controle de desempenho, impede o pobre funcionário de se concentrar mentalmente e de verbalizar suas idéias e emoções. Qualquer pessoa que não consegue criar elos com o processo criativo e usa apenas o cérebro, acaba desestruturando o equilíbrio de sua vida. O digitador de terminais de computação, por exemplo, não pode nem pensar no que está fazendo (se pensar erra mais vezes), e quanto mais alienado estiver, melhor será seu desempenho para a empregadora, que não quer nem saber se ele naufraga na tensão dos escaninhos psicológicos e na solidão da aridez profissional. Há 30 anos você passava por uma roça de milho e via, lá na baixada, dez ou mais capinadores no eito, papeando e cantando, de sol a sol. Hoje, se você passa no mesmo lugar, o que vê é o tratorista, remoendo sua hipocondríaca solidão, manobrando o volante e a caixa de marchas na direção da gastura dos próprios elos que tem ou que tinha com a vida mais salutar. Se não me apaixono por mim (agora o John Lennon diz à Ioko Ono?), alguma mulher o fará? Se não me quero, quem me quererá? Assim ele dizia e tornava a dizer a si mesmo, evocando a dispersão dos hippies e dos beatles na fímbria circular de um dia que procurava a noite com as suas horas de sono. Estava agora nas ruas do único bairro plano da cidade, quando, caminhando em sentido contrário, passou a mulher que certamente inspirou a citação de Grahan Greene: “Eu a quero, de vez em quando. O desejo sexual tem seus ritmos. Mas não a quero para ser minha vítima”.

quinta-feira, outubro 11, 2007

MOSÁICO MIMÉTICO

No princípio era a natureza e o índio, a paisagem inviolada, quase santa. O amor dos seres vivos era feito a céu aberto e não escondido nos escombros e penumbras. Depois vieram a ferrovia e a rodovia, aproximando os horizontes, malgrado as chamas e as fumaças. Os transeuntes podiam optar por seguir ou ficar. A maioria que vinha, ficava. Depois vieram as chaminés e os pernilongos, a escassês do oxigênio na paisagem maculada, o macuco no saco e na cabeça de toucinho. Os lavradores chegava a reboque nos caminhões, travestidos de proletários e favelados. Assim nascia a cidade industrial no brasil brasileiro: as individualidades anuladas em comboios de ferro e aço. Os pardais tomaram conta dos quintais, afugentando os pintassilgos e os sabiás e as saracuras. Da reserva ecológica que estava aqui só ficou a lembrança de uma perfeição formalista, já arcaica e ainda assim bela.

quarta-feira, outubro 10, 2007

CITAÇÕES DE “O ANATOMISTA” (*)

1) “O que aconteceria se as Filhas de Eva descobrissem que trazem no meio das pernas as chaves do céu de do inferno?” (páginas 13 e 152). 

2) O catálogo do bordel Fauno Rosso, de Veneza, nada dizia sobre “os olhos verdes como esmeraldas e nem sobre os mamilos duros como amêndoas, cujo diâmetro e textura evocavam a pétala de uma flor – se houvesse – que possuísse o diâmetro e a textura dos mamilos de Mona Sofia. Nada dizia sobre as suas mãos que, de tão pequenas, pareciam não abranger o diâmetro de um falo, nem sobre a boca mínima, cuja cavidade dir-se-ia impossível de acolher o volume de uma glande inflamada” (página 18). 

3) Massimo Troglio afirmava em seu livro Scuola de Puttane (Veneza, 1539) que “uma mulher pode conceber um filho de até sete homens, cujos sucos seminais se unem no útero e combinam-se entre si segundo a força seminal de cada um dos pais” (página 57). 

4) Apaixonar a alma de quem você ama é fazer com que o corpo dessa pessoa passe a arder como fogo de uma grande caldeira (subentendido na página 120). 

5) Na página 151 é citada a obra mencionada por Mateo Colombo, que fala da existência de um órgão feminino chamado Amor Veneris, “que exerce funções análogas à da alma nos homens...É uma protuberância que surge do útero, perto da abertura chamada boca da matriz, e que é a origem e o fim de todas as ações destinadas ao prazer sexual.” O autor estaria falando do clitóris? E afirmando que a alma da mulher é o próprio corpo? 

6) Na página 143 o mesmo Mateo Colombo afirma que “se observais o sêmen algum tempo depois de haver sido liberado, vereis que seu volume reduz ostensivamente, até sua décima parte. Isto porque os espíritos que o habitavam regressaram à alma”. Isto tem cabimento? Essa redução não acontece também com o cuspe? 

(*) Livro de Federico Andahazi, tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman, Editora Relume Dumará, rio de Janeiro, 1997.

CABEÇA, TRONCO E MEMBROS - as três partes do poema

É assim que num poema de Gertrude Stein a forma da rosa é o conteúdo da rosa, é assim que tu és a poesia e sendo a poesia - o ser e o não ser na palma da mão vão em círculos, voltando sempre, a confirmar e a desmentir a filosofia (esse bonde andando em círculos): tu és o que mais importa. O amor só de desejo de sonho de olhar (o desejo de tantos anos vai passando, vai passando do sonho à realidade). A forma que posso ver e sentir: a carnação de seus dons no olhar? O corpo: as flores da pele, as rosas dos ornatos, o mover dos lábios, uma lua a esconder o rosto? A flor das entranhas, nutrida de versos. Podia roubar um beijo de sua respiração, um dedo de suas mãos? Podia ganhar um doce de suas palavras, um sim nas alturas arrebatadas? Um carinho na sabedoria dos seios! Um abraço no arrepio dos cabelos? A sorte grande na delícia de um orgasmo? O gosto vermelho e profundo de suas internações? A deliciosa umidade da língua revirada e oferecida na boca do amor? Podia e não pude.

MONA LISA NOVAMENTE VEIO À TERRA

Anos e anos de sorrisos discretos e prazerosos, alguns como respostas, outros com provocações, quase todos oriundos da predisposição de amar. O seu amor (pelo menos ele, neste mundo) alteia o fluxo das próprias ondas, alivia a tensão dos alheios ferrões. Que pelo menos ele, neste mundo, seja a promessa que não se cumpre e não obstante se renova, de tal maneira que mesmo ilhado em abismos, é talvez o único dos amores conhecidos que semeia e colhe e alimenta a felicidade. À noite no jardim, ao abanar as mãos, ela agita as rosas do próprio corpo. Depois, na casa das chuvas musicais, ela oferecia um dos seios, ao inclinar-se? Oferecia, mesmo sabendo de minha inaptidão de acolher a imerecida ventura?

segunda-feira, outubro 08, 2007

A TENTAÇÃO NOTURNA DOS FILMES

Foi na infância, quando fazia o Ginasial em Itapecerica, que contrai a cinefilia, para o resto da vida. No começo eram os faroestes e os seriados, depois vieram as comédias, os musicais, os capas-e-espadas, os bíblicos, os históricos, e quando estava na adolescência, em Belo Horizonte, aí caí de corpo e alma nos dramas e tragédias conjugais, nos policiais, nos de terror, de ficção científica, nas desventuras das guerras, nos contrapontos líricos, de vez em quando e também nos chamados filmes de arte e nos de “autor” – e a partir daí podia esquadrinhar e balizar o gosto, preferindo, sobre tantos lançamentos simultâneos, os mais refinados, assinados por cineastas do nível de Hitchcock, Hawks, Ford, Wilder, Wyler, Chaplin, Kasan, Latuada, Visconti, Rosselini, Renoir, Antant-Lara, Cocteau, Korda, autores de toda uma revoada consecutiva a passar diariamente do meio-dia à meia-noite nos cinemas do centro da cidade, de tal maneira que se podia programar a visão dos melhores (às vezes eu saia do Gloria na sessão das 20 e entrava no Metrópole na sessão das 22 - o trabalho era de andar só dois quarteirões). Via tantos filmes, tão constantemente, que cheguei até mesmo a contrair uma espécie de transferência visionária, associando imagens dos intérpretes com as de pessoas da vida real: o tio que lembrava (por um traço fisionômico, um tique gestual, um modo de olhar ou de se portar) Gary Grant, o primo que tinha os ares de James Stewart, a colega de aulas noturnas que tinha a cara de Laraine Day, a colega do bar em que eu trabalhava, que substituía na proximidade e na vivacidade todo o encanto de Paulette Goddard..., e a partir desse compêndio de presunções, era só ver uma mulher passando na rua que logo me vinha a idéia ou mesmo a imagem da Patrícia Neal ou da Jean Arthur ou da Claire Bloom; se era um homem que passava, podia ser o sósia de Charles Coburn, de Dana Andrews ou de Gary Cooper. Tanto essa “transferência” instintiva se evidenciou em meu subconsciente, que tempos depois, ao escrever o romance “Por Que Choras, Saxofone?” (ainda inédito), ambientado em Belo Horizonte na década de 50, não consegui evitar a nomeação dos personagens com a dos atores e atrizes dos filmes que mais ficaram em minha lembrança. Assinando uma coluna no jornal “Magazine”, de Divinópolis, nos anos de 2004 e 2005,.não pude evitar de resenhar, por alto, alguns filmes que via nas sessões do Telecine e também nos vídeos e dvd locados eventualmente. Em pálida homenagem à nunca assas louvada sétima arte, transcrevo aqui algumas notas então publicadas: A MORTE PASSOU POR PERTO (1957), de Stanley Kubrick, com Frank Silera e Irene Kana, um filme-noir (estilo que já marcou uma das melhores épocas do cinema) em que a perícia artesanal dá uma espécie de terceira cor ao preto e branco, a luminosidade da própria escuridão, criando a paisagem antropológica, por assim dizer, dos notívagos, estranhos seres que se portam noturnamente até mesmo em plena luz do dia no submundo dos devotados aos descaminhos e estreitezas pecaminosas do crime e de seus lúgubres aparatos: a solidão, o silêncio, a treva, o destino infundado da contrariedade ao mesmo tempo gritante e assumida. As casas sombreadas, as ruas afuniladas, o infindo prélio do bem com o mal, sem definição de resultados, sem vitórias e sem derrotas. A narrativa do gosto de transgredir de um lado e de reprimir do outro. Desde quando? Até quando? Artesão e artista, competente e refinado, Kubrick partiu dos projetos baratos para as realizações espetaculares e nunca perdeu o pique nem a finalidade: só ralizou bons, belos, grandes filmes como “O Grande Golpe”, “Glória Feita de Sangue”, “Spartacus”, “Lolita”, “Doutor Fantástico”, “2001, Uma Odisséia no Espaço”, “Laranja Mecânica”, “O Iluminado”, “De Olhos Bem Fechados”, para citar os que vi. No que agora estamos falando, ele joga os dados mais simples na história de três pessoas tristes e desenganadas:o boxeador fracassado, a dançarina fracassada, o gangster apaixonado, e tira daí os efeitos cênicos de uma obra que exprime e revela de forma veraz certos momentos e lugares da vida e do mundo, que a maioria da produção de filmes em nosso tempo não consegue. TABU (1931), de F. Murnau e Robert Flaherty, com Reri e Matahi: um dos dez filmes que eu mais tinha vontade de ver, desde 1958 e que agora vejo em cópia de DVD. Tudo o que intemporalmente cativa a alma humana: a natureza edênica, a inocência original, o bucolismo não degradado, a aurora e o crepúsculo entre o dia e a noite como duas auréolas em dois amantes, a beleza de toda feição genuinamente feminina, onipresente no sonho do amor e da poesia, longe dos braços da paixão e da prosa. Tudo isso no filme? Tudo isso e o céu também. O idílio nos percalços da naturalidade, as imagens superpondo-se na água, na praia, na mata, na montanha, na fusão das coisas e dos seres contando as histórias das pessoas, que é a mesma nas escalas elementares da criação. O movimento dos corpos ao compasso dos movimentos das almas: Reri, humana criatura, é sagrada deusa e passa a ser interdita até mesmo ao simples olhar do humano desejo. Ela que já tinha o namorado Mathai, que a adorava. E então? O amor humano vai submeter-se, aniquilar-se diante da devoção da divindade? Ela não era uma deusa para ele e ele um deus para ela? O impasse criado não instaura uma violência que contradiz à divina piedade? Foi assim, indagando, que a dupla Murnau – Flaherty abordou com maestria a congênita dramaticidade da poesia: a meia-pedra e o meio-tijolo da certeza incerta e da certa incerteza que medeia o céu e terra sob a égide duelística do plausível olhar divino contra a implacável hipnose demoníaca. FAUSTO (1926), de Murnau, com Emil Janning e Camila Horn.. Quando as portas do inferno abrem, as trevas fumegam, ribombam e estilhaçam. O surrealismo increspado domina os quadrantes e os círculos de todas as culturas do mundo. Se o Bem não resolve o impasse, que o Mal o faça: é a lição dos licenciosos da moralidade claudicante. O tema é antigo, atávico, repleto de variantes, discernimentos, sombreados – e nas mãos de Goethe equivale ao da própria fundamentação do mito. Eu mesmo já tentei uma paráfrase numa peça teatral (“Fogo Corredor”), ainda inédita, aproveitando a série de casuísmos dos chamados atos institucionais do tacão militar de 64 a 82, que dependurou a dignidade nacional no varal das tempestuosas sujeiras das salvaguardas demolidoras. Este filme não passa de um pálido lampejo de uma imensa luminosidade sobre uma treva de igual magnitude que, fora do cinema, forma a bela trilogia dos autores Goethe-Mann-Rosa referente ao secular e fáustico paradigma. FEBRE NA SELVA, de Spike Lee, com Lesley Snipes e Annabela Sciorra. Muitas aquarelas de muitas metrópoles podem ser bucólicas, mas as do Harlen (onde no dizer de Woody Allen as pessoas começam a fazer sexo muito cedo, geralmente às seis da manhã) são os lados opostos dos cartões postais. Estamos diante de um dos melhores filmes dos últimos anos, feito dentro do problema racial, dando a palavra aos negros, palavras que anotamos assim por alto, no escuro do cinema. - Sabe por que os brancos nos odeiam? Porque não são pretos. - A finada mulher continuava a pedir ao viuvo: beije meus lábios, beije. Ele procurava e não encontrava os lábios dela. Os pretos só pegam brancas. E as pretas mais lindas só pegam branquelos hediondos ou bobões. - Já me xingaram de carvão, meia-noite, negão, mas tudo por inveja. Os brancos adoram meu tão profundo bronzeado. - A certa altura os dois perfaziam a cena do mosquito no leite: o afro e a italiana se fundindo na descoberta de novos e belos mundos. “Fico às vezes tentado pelo doce néctar do fruto de outra mulher, mas o diabo não tem nada a ver com isso”, ele diz. - Uma delas diz à outra: Estamos perdendo nossos homens para as brancas. E a outra responde: Precisamos sair com os brancos, mas nenhum deles presta, nenhuma das cores presta. Mas detestaria dormir com um arco-íris. Resumo do filme: toda pessoa calma e ajuizada traz dentro de si, sem saber, um vendaval que às vezes irrompe, incontrolável. E num minuto desaparecem o passado e o futuro, fica só o presente, pegando fogo. LEVADA DA BRECA, de Howard Hawks, com Katherine Hepburn e Gary Grant. Hawks é especialista em comédias malucas, mestre em satirizar situações sérias com pessoas iracundas e sisudas, de tal maneira que o humorismo flui naturalmente, sem forçar a barra dos jogos de cena das gagues e dos esgares. Ele sabe tirar a água da pedra, jocosamente. Mestre também no tratamento dos dramas e dos faroestes cinco estrelas, autor que é dos infinitamente reprisáveis “À Beira do Abismo” e o antológico “Uma Aventura na África”, na interpretação inolvidável da dupla Bogart-Bacall. Neste “Levada da Breca” ele educa cachorros e domestica leopardo sem os recursos digitais. com muito mais credibilidade. NÃO ME MANDEM FLORES, de Norman Jewison, com Doris Day e Rock Hudson. A Doris não é só um amor de pessoa, é uma festa em figura de gente. Sem dúvida que é uma das responsáveis pelo que a América do Norte tem de grandeza e de beleza (quando ela canta o “Que Será, Será”, em “O Homem que Sabia Demais”, ela escreve com letras de ouro o momento mais belo de toda história dos Estados Unidos). Neste filme ela só falta cantar. Mas provoca risadas sem parar: e enquanto mais nervosa fica com o personagem do parlapatão interpretado pelo Rock, mais encantadora fica, loura e vermelha, ao lado dele, impotente e grandalhão, hipocondríaco, todo sombreado (e mesmo assim ótimo no papel). Não dão a menor pausa à hilariedade. O ESTRANHO, de Orson Welles, com Loreta Young e Edgar G. Robinson. As angulações visuais (usual maneirismo de Welles) surgem nas primeiras cenas com várias câmeras focalizando de diferentes pontos de vista o andamento narrativo. A narração é convencional, como observa Pauline Kael, que todavia o livra da pecha de filme menor, assegurando a evidência wellesiana de que as pessoas em geral carecem de mais dimensão para seus movimentos. Loreta Young (mesmo dormindo, ela é a vida acordada) é uma das fixações de minha adolescência, quando me inebriava diante de um close dela no spootligth: a deslumbrada suavidade das feições e expressões. Não é por menos que as estrelas do cinema tornaram-se protótipos e paradigmas das mulheres de todo o mundo. Antológica também é a aparição do próprio Orson Welles numa das cenas do fim: os olhos enormes inchados (como bochechas?) que brilham na escuridão do inferno nazista do qual seu personagem procede. REMBRANDT, de Alexander Korda, com Charles Laugton e Elza Lanchester. Quando perde a esposa em Amsterdã (1642), ele se perde na escuridão da inutilidade e só se refaz nos braços de outra mulher, quando volta a enfrentar seus velhos e inseparáveis demônios, que tanto o instigam. Quando um homem possui uma mulher, ele diz, possui todas as outras, e possui também a lua, as estrelas e muito mais. As quentes mulatas, as louras frias, as esbeltas que atormentam. E continua dizendo: “sinto que meu mundo não é material, que vivo numa nuvem densa e deslumbrante. Oh, Deus, é impossível viver corretamente, vejo tuas obras, uma a uma, que falam-me de tuas profundezas”. Degradado até à ultima baixeza (como diria o nosso Manuel Bandeira), ele só se recupera quando conhece a moça de olhos tristes e mãos frágeis, vendo nela a água que a lava e a luz que a ilumina. Quando o olhar já não tem medo, a boca sorri amplamente. A vida do artista é mais trágica porque ele não morre apenas uma vez, mas está sempre a morrer em cada capítulo de sua obra. DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL, de Glauber Rocha. Qualquer obra de arte fala por si, por isso acho desnecessária a badalação do Glauber, que é assás repetitiva, boba e ineficaz. Serviu apenas para dar mais asas à dupla Caetano-Gil? Mas o filme..., é o que sobrou da terra exaurida, a caatinga, as falas inaudíveis... A sonorização dos filmes brasileiros é em geral tão ruim que deveria ser substituída por legendas como nos filmes de outros idiomas, não? A cantilena do povo saindo das pedras, o Monte Santo a expandir os raios solares, um sistema de crenças a céu aberto: os pobres terão as terras verdes do céu, os ricos, as terras vermelhas do inferno. As carabinas disparam, os jagunços e cangaceiros lideram as amotinações contra os tacões da oligarquia inexpugnável. A robustez um tanto obesa dos personagens contradiz o pregão da miséria nordestina. Por que até hoje a arte não tem um olhar mais sensato e consciente sobre o Nordeste? Não está passando da hora de baixar o pano sobre Jorge Amado e suspender sobre Graciliano e João Cabral? O fatalismo que temos visto é caolho e maneta, a desgovernança política impera de ponta a ponta. Os honestos (Arraes, Celso Furtado) definham e morrem, enquanto os corruptos dos conchavos engordam e enxameiam, já rompendo os limites do Norte. Você puxa uma pessoa e só vem a roupa suja e rasgada. Até quando vigorará esse errôneo tiroteio? O Antônio (Conselheiro) das Mortes precisa de uma boa e visceral revisão. TESTAMENTO DE ORFEU, de Jean Cocteau, com Jean Marais e Juliette Greco. O tempo obedeceu às mesmas leis do espaço. O filme é o veículo do poeta em busca da sabedoria, na qual vai se desnudando até entrar nos sonhos dos fantasmas simbólicos. Não é gratuitamente que Cocteau é considerado uma das figuras mais emblemáticas, instigantes e carismáticas da moderna cultura francesa. O fogo que revela a fotografia pode também queimá-la. A arte de morrer e renascer continuamente é manifestada no ritual transformista ao som dos batuques e à vista dos sortilégios afros e primitivos. A cama na vertical é um altar de súplicas e oferendas, a porta do armário é o quadro negro onde Picasso pinta a morte e a ressurreição antes de construir um Mimo de Vênus. Culpado pelos crimes que não cometeu, o poeta tenta atravessar a parede desse loteamento para o mais largo e vago do outro mundo. Ninguém jamais sentiu uma certa dificuldade em viver, uma sensação de que está num tempo e num lugar errôneos? Jean Marais faz o papel do homem que não passa de um caos ambulante das cavernas e bosques intemporais – e Juliette, sempre explícita na irreverência, está aqui muito longe do mosaico existencialista de Saint-Germain ,de Sartre e Epígonos. Sem aquela aureola de musa dos combatentes ressentidos da postura ditatorial dos ensinamentos dogmáticos da classe dirigente. DE CORPO E ALMA, de Robert Altman, com Nave Campbel. Toda a numerosa grafia corporal bailando ao som dos sopros e percussões da alma. A arte da mais alta sensualidade no mundo mais refinado do balé estético. O close na garota, o equilíbrio das estrelas dançando no empíreo, oniricamente na graça lânguida. Ao som em gotas de chuva extemporânea, os deliciosos favos coreográficos, os átimos e átomos amplificados, escorregadios no equilíbrio rotativo das abstrações redentoras de outros momentos fugazes. O que está no interior do movimento é o que conta: pode ser um pássaro, uma criança, uma cor de fagulha, uma comoção extasiante, um púbis momentaneamente exposto, esvoaçado no torvelinho enluarado. Assim dançam os pensamentos, corporeamente. O próprio chão é aéreo, aereamente azulado. PAVOR NOS BATIDORES, de Alfred Hitchcock, com Jane Wyman, Marlene Dietrich e Richard Todd. A música que toca nos nervos, o carro na velocidade que nos atropela, o casal apavorado fugindo e procurando – é assim que a maestria de Hitch dá o tom do intróito. Logo surge Dietrich, apavorada, a falar da morte do marido. A seqüência é limpa e congruente, não desperdiça um minuto de nossa atenção, não joga fora um gesto dos interpretes, uma cena na continuidade, tudo enquadra, fundamenta e tampa cada parcela das ações, a conjuntura tramática da vida e da morte em questão aberta e repleta de percalços de toda ordem. A Jane Wyman é bonita, é boa atriz? É, sim, e no filme BELINDA, que lhe deu um merecido Oscar, ela já exprimia o mesmo semblante de uma de minhas irmãs (e um amigo de Belo Horizonte, onde morávamos na época, é que chamou minha atenção para a parecença), tendo apenas a pureza e a formosura como armas de defesa no aguerrido cotidiano de todos os tempos. Mas ela teve a infelicidade de desposar o canastrão Ronald Reagan, que sujou o nome dela nas porcas malhas do macartismo de triste memória. Mesmo assim o seu conceito de boa atriz sobreviveu, é claro. E neste filme, como no outro citado, ela fascina, mesmo estando um tantinho rechonchuda, mas com os olhos e os lábios tomando conta do rosto e da preocupadíssima personagem que interpreta. Com ela e com Todd e Michael Wilding (primeiro marido de Elizabeth Taylor) e Dietrich e a batuta de Hitch um senhorial teatro inglês passa a ser o palco real de todo o pavor dos bastidores, onde se representam a culpa e a inocência em papéis trocados, como acontece muitas vezes na vida real. Hitch é Hitch do princípio ao fim de sua carreira, nas vozes e nos gestos, nos detalhes e na substância. ESCOLA DE SEREIAS, George Sidney, com Esther Willians e Red Skelton, Xavier Cugat e Sua Orquestra, músicas de Harry James e a voz de Carlos Ramirez. Os tímpanos atinados, afinados, atilados, a mulata a rebolar nos tinidos metálicos e sopros abstratos, a fonética do bailado das coisas e dos seres nos ataviados palcos da vida cor-de-rosa. A rumba nos bemóis e sustenidos, a Esther, uma escultura sobrehumana, de beijos e abraços molhados no verde-azul da piscina, onde nada e mergulha como o doce pássaro da nossa juventude. Carnalidade fresca e rosada, mananciosa de excitações, prodigiosa de promessas. No fundo das águas límpidas suas formas empertigam, arredondam, exprimem a sensualidade da natureza, sublimando os detalhes do específico tremeluzir do desejo, da magnífica fibrilação das cordas libidinais da felicidade corporal no ápice da salubridade existencial. O certo é que a galhofa e o romantismo têm cílios longos e largos como o par Esther e Skelton. É até estranho reconhecer que o imperialismo norte-americano, hoje antipatizado no mundo inteiro, teve início no brilhantismo das artes populares (música e cinema), e que levou a todos os recantos do mundo esses produtos da fábrica de sonhos chamada Hollywood, que depois deu no que deu: a infelicidade política de enganadores como Kennedy, Nixon, Reagan (pai e filho), que estiolou, massacrou o sonho, virando a face da complascência para baixo e a do horror para cima. Mas é revendo Esther Willians que confirmamos a crença de que priorizar a função libidinal do corpo é resgatá-lo da mera condição de absorção e de exceção. Ela em tantos filmes de água e ar dos mais puros para os nossos pulmões e corações. OUTUBRO (1929), de Sergei Eisenstein. Um documentário de expressiva feição plástica e intrigante composição narrativa, cujo roteiro retrata e enfatiza os lances e meandros da revolução soviética de 1917, quando uma nova era parecia clarear os horizontes da história da civilização com os raios portentosos, que infelizmente não mantiveram a voltagem de força e luz até o final do século vinte, apagando-se melancolicamente nos braços da incompetência política e da má vontade dos seres humanos em geral. Ficou, no entanto, o épico, exemplar e encorajador prenúncio da possibilidade utópica da derrubada de um arraigado e vicioso poder secular, no filme representado pelo tzarismo da monarquia, da oligarquia, do feudalismo, do atraso de toda forma de vida humana. Outro poder se levanta anunciando a reeducação das pessoas e a reciclagem das metodologias governamentais. O júbilo no ar tinge os rostos de manifestações airosas de sonhos e exigências, instaurando assim a teoria revolucionária do comunismo distribuidor eqüitativo do pão e da liberdade, agora sem as tristes e notórias exclusões. O filme é uma obra de arte, sem didatismo, apenas saudando a aurora redentora, vermelha e viva, enquanto durou. Mas nem tudo se perdeu, apesar das tempestades posteriores. Sem o bolchevismo russo de 1917 a humanidade já teria se consumido em si mesma, na ganância dos mandatários das nações e das sociedades. Ou não? A INFÃNCIA DE IVAN, de Andrei Tarkosvki. As guerras ideológicas do século 20. O menino, o bode, a borboleta, as árvores, a mãe com o balde, o moinho eólico, as varas na vertical sobre a água estagnada. O menino é o guia da vida rural dissipada pelas lutas militares da desunida União Soviética. O lirismo desmiolado, aos farrapos, mas sempre o lirismo, aqui e ali em alguns momentos e em cada vez mais raros lugares. O lirismo nas mãos dos mestres da expressividade é sempre conseguido e transmitido, mesmo sobrepujando áridas circunstâncias. Tarkosvki sabe dosar e transigir, sempre inculca um namoro, mesmo reles, no intervalo das refregas. O fio romanesco não é amarrante, motivo pelo qual às vezes a atenção é dispersada – e o menino tem que tocar o sino para despertar o ânimo das pessoas cansadas de tanto bombardeio. É um filme longamente triste como duas sombras de crianças correndo na praia brumosa, também guerreada e vencida. A VIUVA ALEGRE, de Curtis Bernhardt, com Lana Turner e Fernando Lamas, música de Franz Lehar. Vê-se logo e até inesperadamente que já no começo do século 20 o dinheiro norte-americano causava rebuliço no resto do mundo, gerando esperança de resgate de insolvências e medo de maior afundamento nas republiquetas do terceiro mundo. O filme começa a engasgar logo na abertura das cortinas e mostra a suntuosa encenação de uma monarquiazinha em maus lençóis. A frivolidade se atenua um pouco quando Lana Turner chega e começa a dar suas cartas brilhantes, porém restritas, num filme vazio e transparente, muito aquém dos dotes e talentos dela. O MÉDICO E O MONSTRO (1932), de Reuben Mamoulian, com Fredric March, Mirian Hopkins e Rose Hobart. A neblina e a escuridão encobrem as ruas de Londres – e o policiamento ostensivo indica a iminência dos perigos nos quatro cantos. O médico professa que o ser humano é dois em um: um a tentar a sobrevivência animal, e o outro a tentar o alcance da nobreza de caráter. Como fundir as duas partes de forma que se possa aproveitar apenas a boa? O laboratório das empíricas poções funciona e se torna o inferno repleto de boas intenções. O endereçamento dos instintos e não da mente é atingido e daí é só tomar a droga e ficar doidão, como acontece aos montões nos dias atuais. Quando ele quer retroagir, é tarde. O vício é imbatível, vira e mexe e lá vem os demônios dos quintos dos infernos. É assim que a curiosidade mata o gato? O MÉDICO E O MONSTRO (1941), de Victor Fleming, com Spencer Tracy, Ingrid Bergman e Lana Turner. Ressalta na tela, logo no início, a prioridade apreciativa das doçuras ímpares de Ingrid e Lana, no preto-e-branco mais colorido deste mundo. A candura de Lana ameniza o reacionarismo vitoriano de uma sociedade que não abria mão do círculo vicioso de seu status. E Ingrid, do alto sueco de suas maravilhas que fascinaram outras províncias internacionais, oferece o riso da tríplice conjugação facial: olhos/nariz/boca, que faz o Dr. Jeckil perder a cabeça e as estribeiras. Exímia e expansiva nos lances, concisa nos modos e expressões, ela brilha, mesmo dentro da mais espessa escuridão do sofrimento. “Dizem que não sou feia quando estou à vontade”, ela diz ao médico, sem saber que ele é o monstro que a submete ao regime de terror mais torturante. A bela e a fera, a inocência e o pecado, a beleza e a feiúra, os dois extremos em atritosas relações. Mesmo diante do suplício, ela se mantém ilesa interiormente e sua formosura não afetada reluz na suavidade das auréolas de seus dotes inerentes. Grande filme. A dualidade química das poções transformistas seria uma premissa da síndrome mais atordoante dos tempos atuais: o vício das drogas alucinantes, agora já no nível social de contaminação? (Um simples adendo. Revendo agora, depois de tantas décadas, o filme SUEZ, com Tyrone Power, Anabela e Loretta Young, senti-me, estranhamente, como se fosse uma pessoa para quem o tempo não tivesse passado, ou então, como alguém que tivesse morrido ou dormido durante décadas e ressuscitasse ou acordasse repentinamente dentro daquela terrível tempestade de areia do istmo que virou o Canal de Suez). A ESTRADA DA VIDA, de Federico Fellini, com Giulietta Massina e Anthony Quinn. No cenário de pobreza de uma terra castigada, as pessoas se privam de tudo, até do reles pão de cada dia. Elas se viram, enrolando. Os dois interpretes equivalem-se nas performances: ele na truculência arraigada, ela na patetice de nascença. Pândegos e palhaços, eles são, e a platéia (a humanidade inteira?) também. Gelsomina é a réplica feminina de Carlitos, duas figuras patéticas e não apenas cômicas do cinema. A estrada da vida é longa e espinhosa, repletas de atropelos e zombarias: sai dos cafundós, passa nas bocainas e chega-se aos desterros nas lúgubres noites das procissões dos enterros. Gelsomina gosta, ri, sem saber que qualquer cidade não passa de uma roça grande, com outras plantações e colheitas. A jocosidade tem suas pausas de muita tristeza. Quê cara engraçada ela tem, alguém diz, no filme e fora do filme. Só de vê-la dá vontade de sacaneá-la? QUANDO AS NUVENS PASSAM, de Richard Whorf, com um elenco fabuloso de astros e estrelas. Em 1954 eu vi o trailer desse filme no Cine Brasil (Praça Sete, BH) e só agora consegui vê-lo inteiramente. É musica em toda parte, o tempo todo (tenta-se contar algo da vida do compositor Jerome Kern)): até as pedras da rua, os balanços do parque, as roupas e sapatos das pessoas cantam, tocam saxofones, bailam nos apinhados palcos de uníssonos figurantes. Nenhuma linha dramática, nenhum fio condutor, nenhum pano de fundo para surpreender – mas em compensação desfilam as moças encantadoras da melhor juventude de todos os tempos do planeta, escolhidas a dedo. Um beijo casto da moral puritana? Como tentavam esconder a sensualidade inerente das pessoas, heim? Mas June Alisson tinha aqueles lábios inchados de tanto beijar (fora dos filmes, com certeza). LA MAJA DESNUDA, de Henry Koester, com Ava Gardner. A mundialmente propalada beleza de Ava na época de seus belos filmes despertavam em mim a suspeita de que toda aquela formosura era algo provisório, que o estofo fisiológico dela era vulnerável a uma precoce decadência. Onde contraíra esse preconceito? Nos equivocados comprometimentos amorosos dela com homens truculentos, que a castigavam sadicamente nos intervalos das filmagens? À certa altura do filme, a Duquesa de Alba diz a Goya: “Sua pintura me assusta, é como se visse a verdade de perto, profundamente” E ele responde: “A verdade só assusta quando fugimos dela”. QUANTO MAIS QUENTE MELHOR, de Billy Wilder, com Marilyn Monroe, Tony Curtis e Jack Lemmon. A visão noturna da cidade durante o tiroteio é algo de embasbacar pela limpidez da luminosidade e a confluência dos planos e tomadas. As estrepolias, os abalroamentos, o gangsterismo desafiando a Lei Seca de 1929, tudo conciso e exacerbado num equilíbrio de ação e de situação que preludia perfeitamente a linha narrativa de todo o filme. As fugas e perseguições concatenadas com maestria na exuberância dos cenários e ações da constante transigência da tragédia para a comédia e vice-versa, tudo se faz aos sopros da fumaça dos bandidos, contracenados aos tentadores rebolados de Marilyn, e assim a farsa rola como uma bola no gramado. A versatilidade de Billy Wilder é digna de nota: passa da seriedade preocupada para a alegria descontraída sem forçar nenhuma barra, simplesmente passando como o tempo no espaço. Isso praticamente em todos seus filmes. O CÍRCULO DO MEDO, de J.Lee Thompson. A guerra implícita em qualquer cidadezinha do violento império da América do Norte. A pontuação musical das primeiras cenas já dá o tom introdutório da brutalidade: até a folhagem do jardim treme de pavor, até os seios de Polly Bergen se espetam, assustados como os olhos. O medo sempre foi cúmplice da criminalidade. E a inocente menina, coitadinha? Assim como a serpente hipnotiza o passarinho, o vingador faz com sua vítima. Depois o enredo foi refilmado com o nome de CABO DO MEDO, com ótimo resultado, com Robert De Niro no papel do desalmado, aqui representado por Robert Mitchum, dois grandes atores. Dois filmes eternamente assombrosos. MONSTER – DESEJO ASSASSINO, de Patty Jenkins. Charlize Therou ganhou o o Oscar de atriz principal e Christina Ricci devia ter ganho o de coadjuvante, por sua também irrepreensível atuação. Raramente nos filmes americanos duas intérpretes surgem assim tão ao natural, sem o menor charme, feias de unhas e dentes, aceitando e enfrentando a violência cotidiana do indefinido sofrimento social. Charlize tornou-se uma assassina monstruosa depois de convencer-se que o que suas vítimas mereciam era mesmo o castigo letal, o trucidamento puro e simples. Ela só participa do lesbianismo da amiga depois de certificar-se, enojada, da hediondez realística dos homens que procuravam satisfazer com ela suas taras de estupradores confessos. Um doce anjo era sua amiguinha neófita no meio irrespirável daquele cruento submundo. ALTA SOCIEDADE, Charles Walters. O elenco é uma seleção de nomes exponenciais dos anos 50 de Hollywood. Grace Kelly é a pureza mais linda, brilha tanto que até parece ser iluminada por dentro. Um dos poucos filmes em que ela joga o corpo e suas prendas (maciez, relevos, cores e curvas) na direção dos espectadores. Louis Armstr ong com a voz de todos os instrumentos (e todos os instrumentos não param de afirmar: “Cole Porter é o maior! É o maior!”). O filme não é propriamente musical, mas até o dueto Sinatra-Crosby está bem contextualizado na tramática festança dos milionários. CALLAS FOREVER, de Franco Zeffirelli. Maria Callas, a diva do lirismo, a voz gravada nas películas do som e da imagem que felizmente se remodelam e se conservam ao longo dos anos. Felizes os tempos e os lugares que podem contar com a presença da lembrança de Maria Callas. Toda vez que em qualquer acústica do mundo, mesmo a do campo aberto do pensamento, espoucar as luzes e desabrochar as flores da natureza,os melhores seres são recriados para recepcionarem a gama de fluidos e mensagens, os ímpetos e êxtases, as virações e guaridas dos timbres e acordes e vozes e suavidades de Callas puxando o coral dos contraltos e sopranos, tenores e barítonos (ah, a apaixonada angelitude dela e a apaixonada pungência de Gigli), ah, assim nós, pobres mortais e meros ouvintes, entramos na sinfonia das esferas, nas asas das borboletas, das árias e das sublimações. NO TEMPO DAS DILIGÊNCIAS, de John Ford, com John Wayne e Claire Trevor (personagem central de meu romance inédito “Por Que Choras, Saxofone?”). Até o caubói Wayne, secarrão e entrunfado, está simpático e cordial nesse que não é apenas um dos melhores faroestes, mas sim um dos melhores filmes de Hollywood. O comprometimento ético-moral, sem desdenhar o componente psico-comportamental (o índio aqui é uma figura simbólica nem do mal nem do bem, mas do mal-entendido da colonização): o pecado (a prostituta) e a virtude (a dona de casa) se miram logo que se deparam, e fica a dúvida: quem é o pecado, quem é a virtude? O sorriso da pecadora (?) diante da inocência, é pura antologia cinematográfica. E fica outra dúvida: Ford é melhor que os outros cineastas? Só é inferior na arte de contar histórias a Shakespeare? Mas ele sacramentava, no vai da valsa, a matança dos selvícolas? Penso que não. A luta, em sua obra, não seria apenas um atavio, um atalho, uma maneira isenta de contar uma história tenebrosa em si mesma? TAVERNA MALDITA, de Jack Webb, com Janeth Leigh, Edmond O’Brien, Ella Fitzgerald, Peggy Lee. É a música que instaura, conduz e desfecha o espetáculo. Uma coleção de boas canções desvanecendo os círculos e quadrantes, depois de timbrar os forros e soalhos da casa, quando as vozes de Ella, Peggy e Janeth revezam-se com a corneta, a bateria, a clarineta – já que tudo é orquestra na trilha melódica do roteiro colorido em plena escuridão dos dramas e tragédias da vida social que confronta inocentes úteis à mafiosos inúteis. Ella em duas seqüências, rouba o interesse de nossos olhos, ouvidos e as outras atenções de nossa individualidade. QUERO VIVER, de Robert Wise, com Susan Hayward. Filme calcado na história real de uma inocente executada na câmara de gás de San Quentin, EUA, através de um erro não só judiciário como policial, social e jornalístico. A praça pública, vista no final, parece impregnada dos palavrões de todos os inocentes do mundo sujeitos à mesma pena de erros crassos e gritantes. O filme soube conter o pungente processo de aniquilação, o torturante, vil, desumano e macabro cerimonial da justiça injusta. “Padre, sou inocente”, ela repetiu, antes do sacrifício. AGORA SEREMOS FELIZES, de Vincent Minnelli, com Judy Garland, Margareth O’Brien, Mary Astor. A Judy insinuante e vívida, formosa e cantante, amável e graciosa. Mary Astor no papel da mãe, nostálgica do próprio estrelato. Minnelli, o guardião, o guru, o eternamente apaixonado da eterna juventude de Garland. Bom prenúncio de filmes mais inteiriços, brilhantes e inesquecíveis, que ambos fizeram depois. Margareth exibe com perfeição as primeiras cintilações do que depois se tornou num grande e belo iluminamento estelar que até hoje encanta os aficcionados. E sempre encantará.

A RELER SARTRE, QUARENTA ANOS DEPOIS (*)

O homem, atolado no lodo, é realmente vil? É um doente, sem dúvida, mas se realmente dotado de auto-medicação contra a depressão da angústia, ele pode erguer-se, ainda um pouco solerte e um tanto confuso, com os meios da própria força de vontade. Tocaiado nas curvas dos caminhos e das esquinas, já dizia La Bruyere, o homem vil salta no corpo-e-alma do homem desprevenido, como se fosse uma mosca a procurar dilacerações, para infeccioná-las. Por que não amar em quem amamos (ele dizia-escrevia) “o esôfago, o fígado, os intestinos?” Muito mais bem-amada é a estrela do mar, que expele o estômago na praia estival, para mais ensolarar-se em suas peles internas, momentaneamente expostas. Lulu sentia vergonha de seu traseiro, não queria que ninguém lhe fizesse algo que não pudesse ver – e o marido adorava enxergar com as mãos. Uma coisa de homem, se estivesse sob uma saia, seria como uma flor, ele diz em certa página. Ela sentia prazer em si mesma, pensando em coisas puras, padres e mulheres. As axilas femininas não raspadas, azuladas sob os pêlos anelados, o irmãozinho a cogitar se erali que se fazia sexo, uma parte angelical tão ardorosamente beijável. Um rio vermelho a serpentear sobre campos áridos, era assim o desejo ziguezagueando no corpo dela . Estou sim a reler Jean Paul Sartre: tentei sepultá-lo antes dele morrer, mas sinto que agora ele vem a mim, empunhando suas obras, nas quais a arte das palavras fala mais alto aos ouvidos (supostamente tapados): o existencialismo é uma meia-luz a menosbrilhar nos confins das existências, mesmo nos das ainda não alcançadas. Estou, sim, a reler Sartre. Estou na página em que Risette examina, escandalizada, as obscenidades das formas corporais do corpo da amiga Lulu: “um tralalá pequeno e redondo, ou seja, saliente e indecente”. O traseiro pelo qual a própria dona sentia vergonha, tentava escondê-lo com as mãos e contra as paredes, mas... mas mesmo assim colava-o por dentro da saia e, pronto!, era ali que dançava a magra silhueta azul da pequena redondidade. “Só eu me posso dar prazer”, ela dizia. “Ninguém crê em mim, só o médico, que disse ser uma doença incurável. Meu Deus, pensar que a vida é isto, que é por isto que a gente amanhece e anoitece, se lava e se faz bonita e todos os romances se escrevem”, tudo assim nos trâmites, como se ela não fosse frígida de nascença, afogada em nuvens de pesadas entrelinhas, ela bem que preferia anular-se nos desvãos e nos caudais e ser apenas triste e pura na eterna orfandade... Mais tarde um pouco do dia infindo, ela resolve que rumo tomar na vida e escreve ao amante (apesar da frigidez dividia o corpo com o marido e o amante): “sou sua de todo coração, meu corpo é todo seu... nós nos veremos amiúde como no passado. Henri, porém, se mataria se não me tivesse mais, eu sou-lhe indispensável...”. 

(*) O livro relido é O MURO, tradução de Hovanir Alcântara Silveira, - Instituto Progresso editorial, São Paulo, SP, sem data.

quarta-feira, outubro 03, 2007

ARTE E CULTURA: DOIS PONTOS

No capítulo “A Configuração Compartilhada” do livro “Memorial de Divinópolis” (1992), sob a epígrafe da declaração do sociólogo J. H. Fichter, “a cultura é a configuração total das instituições que uma dada sociedade compartilha”, tentei deixar claro no meu entendimento que a Arte, mesmo tendo sua especificidade, não deixa de ser um dos pontos da Cultura. No referido capítulo dei-me ao trabalho de resenhar os dados históricos divinopolitanos , colhidos em árdua pesquisa, a respeito de Literatura, Música, Teatro, Artes Plásticas, Cinema, Festas Populares e outros eventos de calendário, um temário amplo e diversificado, como se vê, ao passo que o tempo da pesquisa e o espaço do livro eram limitados, resultando ao autor a alternativa de uma confessada compilação dos dados. No item “Artes Plásticas”, cito muitos bons artistas em rápidas palhetadas, e na página 130 consta uma menção curta, mas esclarecedora e sugestiva: “1966 foi o ano da exposição individual de Celeste Brandão, cujo trabalho de remontagem de formas arcaicas ainda não foi devidamente estudado”. Pois é, passados exatamente 41 anos, desfrutamos agora da grata surpresa da projeção do vídeo-documentário de Adriano Reis “CELESTE BRANDÃO, O TRAÇO DA MEMÓRIA”, que vem justamente remontar o belo trabalho dela, resgatando, por assim dizer, de forma lúcida, eloqüente, cinematográfica, a dívida de gratidão que a cidade tem para com ela, pela extensão e profundidade do amor e pela acuidade, zelo e competência artística de um trabalho que lava a alma de quem se sente contemplado por ele, que é o caso do numeroso público que desfrutou do belo espetáculo da projeção do vídeo no Teatro Gravatá. Público que ovacionou de pé uma verdadeira obra de arte roteirizada e dirigida por Adriano Reis (guardem esse nome, que certamente vai enriquecer a nossa ainda incipiente filmografia brasileira). Assessorado por técnicos especializados (Luiz Carlos Gonçalves Lopes, Alex Brooks, Solano Andrade e Sávio Andrade) o filme foi valorizado pela narração conscienciosa, pontual, exímia e sincronizada do poeta e teatrólogo Osvaldo André de Melo. Uma verdadeira festa de arte e cultura para os olhos e os corações dos divinopolitanos, que agora podem visualizar e amar os significativos resultados pictóricos da trajetória afortunada da Pintora Celeste, ricamente ilustrativa dos recortes arcaicos de uma cidade em célere e constante progressão ao mesmo tempo material e imaterial. Celeste Brandão e AdrianoReis: a junção plausível de um dos melhores momentos de exposição artística na cidade já beneficiada pelas luzes de GTO e de Adélia Prado. E ao falar em Cultura em sua verdadeira contextualização, temos o prazer de registrar e de agradecer o recebimento o das revistas “Tribuna do Carmo em Revista”, de Carmo da Mata, e “Memória de Cláudio”, da cidade do mesmo nome, ambas editadas sob a responsabilidade de Ricardo Câmara e Márcio Almeida Júnior. Ambas enfatizam, com rigor e apreço, os lineamentos históricos tão ricos e ainda obscuros nos dois municípios vizinhos, com textos consistentes e legíveis, de amigos talentosos e dedicados aos desvendamentos das obscuridades, agora assim com eles esclarecidas, iluminadas: Lineu Carvalho, intelectual renomado, que está pesquisando e escrevendo a História de Carmo da Mata, descobrindo jazidas de preciosíssimas raridades. E Fátima Amaral Guimarães, que belamente incursiona pelo traçamento dos perfis biográficos de personalidades importantes na saudável evolução da vida carmense. A revista de Cláudio aprofunda a prospecção de David Carvalho, que publicou um resumo da história municipal, levantando as origens e assim explicando a evolução antropogeográfica do Município extenso, aprazível e desenvolvido. Boas e instrutivas leituras! Frutos de pertinentes pesquisas que agora serão fontes de proveitosas pesquisas. Parabéns e agradecimentos a todos. Ampliando o leque de nossas informações a respeito de publicações que enriquecem o acervo da arte e da cultura regionais, não podemos omitir o trabalho de Carlos Gondim, Luiz Ribeiro e Magela Gondim, inserido (em parte) no site da internet http://www.santuarionsdesterro.com.br/apresentacao.htm - que apresenta belas vistas aéreas de nossa bela e querida Marilândia, ilustrando trechos da pesquisa histórica sobre a localidade (do livro há muito esgotado, “Memorial do Desterro”).