quinta-feira, novembro 08, 2007

A EXPEDIÇÃO DO GOVERNADOR - Conto

Enquanto os assessores (escrivão, almotacé, capelão, capitão-dragão, sargento-mor e sertanistas) discorriam sobre os afortunados e temerários contrafortes e paredões, lugares forrados de ouro e alastrados de diamantes, o Governador queria saber do Poeta sobre as ninfas sertanejas, moradoras das dobras mansas dos rios e das bordas de escarpas nos abismos de extensas escadarias, entre árvores sombrias e pedras descomunais. - Mesmo o vórtice e o turbilhão – diz o Governador – não estorvam esta quietude de tempos tão passados e repassados. - Em tempos antigos ainda estamos, responde o Poeta. Quando o tempo não for mais antigo, adeus flora, adeus fauna. Minas que hoje tem onze Vilas, terá mais de mil, cada qual mais devastadora. Um dos sertanistas entrou na conversa para falar sobre os indícios de novos focos de quilombos nos campos descobertos do Oeste. O Poeta Cláudio Manoel da Costa aproveitou a intercalação para esgueirar-se nas ramas dos barrancos e inspecionar a nova contextura topográfica que brotava, tenra e promissora. As matas diluíam-se nas encostas, o cerrado esparramava em capões, descampados e restingas. Ele não entendia aquelas intermitências. Alguma mão humana já terá roçado e capinado estas terras tidas como virgens? Por que será que Deus prodigalizou aqui uma variedade tão desconcertante de víveres? Sentiu que perdia de vista os companheiros da jornada, e teve que esporear o cavalo desatento para alcançá-los, impacientes e derreados à sombra de um pequizeiro. Dom Luiz Diogo Lobo da Silva abria a mão da validez científica e da conjetura empírica, apreciava a verve descontraída do Poeta, com seu poder de suprir as dúvidas com os dons da inventividade. Gostava de ver o amigo expandir a área escura do próprio intelecto, juntar fios e blocos numa linguagem de obscuridades, neologismos e clarividências. A respeito de uma flor inédita encontrada na trilha entre o pântano e o bosque, ele falou (como se fotografasse ou escrevesse): “uma borboleta parada no ar?...Um cálice de melodias para os ouvidos incorpóreos?... Ouçam o alarme da corola oculta, vejam a fluídica envergadura do perianto...”. Os outros assessores falavam dos acidentes geográficos, das probalidades periculosas dos quilombos e das guerrilhas indígenas, e também das potencialidades paleontológicas das encostas mais agrestes e das bacias fluviais mais volumosas. Levantavam hipóteses sobre as riquezas naturais das extensões que sumiam de vista, avaliando ao mesmo tempo a quantidade de impecilhos e as hostilidades da fauna selvagem. O Governador mentalizava a terapêutica da clorofila, o manancial sonolento da terra e do ar. Queria o Poeta perto de si para obter dele as informações inconvencionais do cromatismo daqueles lugares nas diversas horas do dia ensolarado, a variação das tonalidades do verde ao alcance dos olhos, a introdução de outras cores no contexto profuso e coerente. Era particularmente vidrado na beleza das orquídeas, microscópicas aqui e gigantescas ali, as aquarelas epífitas e rupículas na fusão dos estames com o pistilo e o estigma, três pétalas, três sépalas, três sexos. Os outros assessores, enciumados, distanciavam-se. A Comitiva estava chegando à Vila de São Bento do Tamanduá, uma região de colinas e florestas. A Vila era considerada muito aurífera e circunscrevia meio-mundo, do Sul ao Triângulo das Minas. As ruas encurvadas alongavam-se no começo da tarde do vigésimo dia do périplo oficial pelos sertões, projetando o cenário diferenciado das marcas colonizadoras. O casario esbranquiçava as visões dos renitentes andarilhos, sem quebrar a singeleza do arranjo natural da vida em si mesma transformista. A festa dos sorrisos dos moradores, das palavras ditas e ouvidas, dos fogos de artifícios que iluminavam as ruas, dos vinhos que jorravam nos almoços e jantares, eram os sinceros aplausos de uma carinhosa recepção. Cada família mais aquinhoada hospedava dois ou três membros da Comitiva . No dia seguinte (11 de agosto de 1764), depois do almoço, Dom Luiz apresentou Cláudio Manoel às moças da Vila, como poeta arcádico e colecionador de visões floridas das minas gerais dos cataguases. O poeta não era muito versado nas práticas dos enleios românticos. Riu em todas as cores, sem valer-se das palavras que aninhavam em sua pessoa ao longo da vida, afastando-se mentalmente, para não se trair, exagerando ou subtraindo as primeiras impressões face à proximidade tão súbita de tantas flores humanizadas. A sala ampla, de muitos ambientes, latejava nos mínimos detalhes, como algo mais do que vivo, como se a própria juventude da moçada circulasse onde os olhos corressem. Uma das moças dava-lhe a impressão que se aproximava dele? Olhou de novo, certificou-se que ela não se movera, embora agora estivesse mais perto dele. Notou que ela tinha os lábios revirados e intensos, os olhos bem rabiscados de amor, os cabelos espigando de tão longos sobre as costas, os pontilhados de sardas desenhando no rosto e no pescoço e nos braços as figuras geométricas e poéticas da civilização milagrosamente encontrada em tão entranhadas lonjuras. O que será que ela queria dizer ao aproximar-se assim dele, sem nem ao menos sair do lugar? Ah, ela devia saber da existência de um viveiro de flores silvestres no arrebalde mais próximo! Firmou os olhos nela, sentiu que nela a própria imagem era uma sombra densa – e pensou que era assim que iria encontrar a laelia dendrebium, que há tanto tempo tanto procurava. Quando viu já tinha dito: “A senhorinha me leva aos jardins das redondezas para conhecê-la?” Depois, a caminho do Sitio das Quatro Bicas, foram alcançados por uma pequena bolsa de chuva em pleno azul da tarde, uma chuva ensolarada, aqueles fios de prata no ar. Ela abriu a sombrinha e ele, timidamente, aconchegou-se. O verde chamuscava nos beirais das casas, a emoção nas orelhas dele e nos olhos dela. Ele teve que se encolher, abraçar as costas dela, recobertas na airosa cabeleira. O vento perpassava, o chuvisco cintilava – mas ele conseguiu conter-se diante do perfume dos cabelos dela e dos próprios suspiros inaudíveis (ela portadora do rubor, ele todo ruborizado): duas inocências desafiadas. Não a beijou como podia e devia – pois tão perto estava da boca dela, tão dentro estava do desejo contaminoso. Foi uma pena para nós, leitores de sua poesia posterior. A literatura perdeu a bela oportunidade de partejar poemas de inovação imperecível no contexto das arcádias e inconfidências montanhosas. Um beijo assim perdido equivale a uma antologia de poemas levados pelo vento das intempéries. Depois, ao regressar, já no alpendre da casa dela, o sol no ocaso (uma bola de ouro na crista da colina), ela disse, meigamente: - Se o senhor gosta mesmo de flores e de pássaros, como pode andar com esses caçadores de cabeças? Ele abriu os olhos, engoliu seco. Deixou o silêncio engendrar a resposta, o silêncio que perguntava e ele engolia sem querer, penitenciando-se. E a bronca dela teve seqüência: - Eles matam índios e negros, que são seres humanos, como nós somos. Matam onças, tamanduás, lobos, perdizes, todos os bichos e aves que encontram, tudo o que é vivo e se move no mato e nos esbarrancados. Não é uma insânia imperdoável? Eles castigam os rios e fraldas dos montes à cata de pedras preciosas, de alimentos da ganância insaciável. Não entendo que seja o poeta que é, estando na companhia deles. Ele ficou bobo de ver e de ouvir. Como então podia estar ali diante de quem falava assim tão corajosamente? Era como estar diante de si mesmo, a fluir do espelho a consciência recobrada. Os neurônios iluminam os nervos, as glândulas, os músculos, os dentes mordem os lábios, os dedos de uma mão coçam os dedos da outra, a memória encontra a fonte dos estímulos. Ela sabe pensar e falar, além de ter a meiguice da beleza? E quem, no momento está na porta do alpendre da casa dela, junto ao vaso de begônias, a ouvir trinados tão verazes? Não estou sozinho no mundo, murmurei. Como nunca esperava, estou muito bem acompanhado, mesmo que eu vá para o mundo das desavenças e ela fique no jardim das orquídeas e dos beijos dos mimos de vênus, aprendi uma nova lição de vida. E ela? Deu-me um beijo na intenção, pelo menos? Mereci um abraço bem apertado dela na hora da despedida? Distanciando-me cada vez mais, dias depois, sentia que a imagem dela me acompanhava, não uma sombra incolor: mas uma luz tangível, propulsora.

sábado, novembro 03, 2007

OS BERROS DA INSÔNIA

Exausto de formigar-me por dentro nas litanias estupendas e de ensangüentar-me por fora no viveiro de pernilongos, a cabeça já latejando à beira do derrame cerebral persigno-me para conjurar o azáfama e recobrar o ânimo esvaído sem desmiolar as nervuras atritadas. Os gritos dos bêbados e drogados vindos intactos e ferinos dos pardieiros adjacentes DEMONHO! - a voz é feminina MEGERA! – a voz é masculina combinam e rimam com os latidos simultâneos de cães desessperados na incúria lá deles nos quarteirões de baixo e de cima de baixo e de cima que chegam ininterruptamente como se já estivessem nos miolos da cabeça da gente. PUTA QUE PARIU! – a voz feminina exclama DO CU DA ÉGUA VOCÊ SAIU! – a voz masculina replica em chicotes e martelos desafinados e tonitroantes. É assim que a noite residencial citadina mantém o fogo do inferno a crepitar em línguas dantescas e abrangentes das chaminés siderúrgicas dos pardieiros malcriados das ruas esburacadas e fétidas das foiçadas de tantas mortes precoces e famélicas famélicas na indócil refrega entre algozes e vítimas da comunidade.