sexta-feira, julho 31, 2009

A FÉ REMOVE MONTANHAS

O que mais te desejo no incrível dia-a-dia (agora que andas achacada de tantos males), é a segura proteção de um santo bem forte a cada hora de tua noite e de teu dia-a-dia. À Santa Terezinha do Menino Jesus e das Rosas, para manter intacto o encanto de tuas aparências. Ao São Jerônimo e à Santa Bárbara. para que os raios do temporal não partam teus dotes e dons. Ao São Bento, evitador de incêndios e amansador de répteis, para resguardar-te dos venenos e feridas dos invejosos. Ao Santo Antônio de Pádua, desatador dos nós afetivos, conciliador das afeições, para manter-te na direção de meu aflito amor. Ao São Cristóvão, encaminhador das jornadas e alvíssaras, para abreviar e alongar nosso encontro no Altar de Eros. Ao São Braz, aliviador dos engasgos do corpo e da alma, para substituir tanto enjôo por supimpas, libidinosos desejos. Ao São Cipriano, fazedor das manias depressivas, atendedor de pragas malditas, para manter bem longe de nós os maus prenúncios eflúvios. Ao São Sebastião, livrador no mundo da fome, peste e da guerra, que nos cumule de saúde, de paz e muito amor. À Senhora Santana, professora das boas maneiras e das melhores ações, que transija nosso conluio do bom para o melhor. Ao São Jorge (dentro da lua), que ao desmanchar as arapucas, mundéus e escaramuças, dê lugar às vivendas dos sorrisos, abraços e beijos. A todos os santos e santas, inscritos no sistema de crenças de nossas minas gerais, rogo e suplico: que teus eventuais inimigos , tendo olhos, não te enxerguem; tendo pernas, não te alcancem; tendo armas, não te firam. Que teus amigos, que teus amores, floresçam e frutifiquem ao teu redor, felicitando-me a teu lado.

CANÇÃO RURAL

Nesta manhã de noites tão femininas, com o sol molhado ao jorro das neblinas: Um canto que responde a outros cantos audíveis na vivência de meus espantos. Depois uma estrela no meio-dia que passa sobre um roçado desfeito em fumaça... Pergunta ao fazendeiro e ao delegado o que fizeram das árvores no cerrado... Depois Passo a passo o vento me acompanha. A hora é cedo na cabeça da montanha. Uma palavra me espera na porteira: é um sigilo de uma flor na trepadeira?

PERDOAI

Ela vem da fonte com as águas todas E deixa a fonte com todas as águas. É assim, que a poesia entrega seus poemas: uma vez na vida e outra na morte. Perdoai-me.

quinta-feira, julho 30, 2009

LITERATURA GENÉTICA

Stella Tavares casada com Glauco Macedo, filha de Raimundo José Tavares (Lute) e de Maria do Rosário Tavares (ele, depois de enviuvar-se, casou com Antônia Alves Campos, com quem teve os filhos Regina Coeli Aparecida Tavares cc William Teófilo de Bessas; e Régis José Tavares). Os filhos do primeiro casamento são: Terezinha de Jesus Tavares cc Cezar Mateus; Maria de Fátima Tavares cc Walter Teixeira Martins e depois com Marcelo Bahia Tavares; Antônio José Tavares cc Ana Coutinho Tavares; Maria Auxiliadora Tavares Duarte cc Emerson Tadeu Duarte Cruz, pais de Adriano Tavares Duarte Cruz; e José Pedro Tavares cc Lúcia Vilela. Ascendência dos filhos e filhas do Lute pelo lado paterno:Avós: Esmeraldina Cândida Tavares casada com o primo José Pedro Tavares. Bisavós: Necésio José de Oliveira Barreto cc Joaquina Rosa de São José. Trisavós: Antônio José de Oliveira Barreto cc Maria Arcângela Tavares. Pentavós: Bernardo José de Oliveira Barreto cc Josepha Maria de Jesus. Sexta geração: Antônio José de Oliveira Barreto cc Anna Joaquina Cândida de Castro, filha de Faustino José de Castro e de Rosa Angélica da Luz. Sétima geração Gregório Francisco de Oliveira e Maria Rosária Ribeira de Freitas, nascidos e falecidos nos arcebispados de Braga e de Angra, respectivamente, Portugal, no século 18. Pelo lado materno a ascendência é das famílias Santos, Souza, Castro e Freitas. Stella é escritora e poeta, redatora de muitos textos dramáticos encenados por novelas e seriados da televisão brasileira. Nunca estranhei sua facilidade de expressão comunicativa, sabendo que é parte de uma família insólita, por assim dizer. Seu pai, Raimundo José Tavares (o Lute), um monumento moral como ser humano, foi funcionário público, advogado prático e, como jornalista, deixou uma coleção de jóias em forma de crônicas publicadas em vários jornais, sob o título “Com a Boca na Botija”, que tanto merece uma reedição em forma de livro. Seus irmãos José Pedro Tavares, Maria de Fátima Tavares, Antônio José Tavares e Dora Tavares Duarte (esta ficou ausente em meu livro de genealogia da Família Oliveira Barreto, por um imperdoável erro de revisão, que será corrigido numa próxima edição): todos são poetas e prosadores da melhor qualidade, com muitos livros em prosa e verso publicados, com ótima aceitação nos meios literários. É com muito prazer que transcrevo, abaixo, os poemas de Dora, de Stella, de Maria de Fátima e de Antônio José Tavares. DONA DE CASA - Dora Tavares. Sou dona de casa Não tive um caso E da vida sou amante: Mas quando entristeço Sorrio entre dentes, pra não desagradar. Lavo, repasso Lembranças de Amélia E transformo incipientes Rotinas em dias de luz. Além das compras do mês, Acumulo surpresas no armário; Transformo bolos de arroz em banquetes de reis. Enxáguo as mágoas. enxugo o que sobra De todas as alucinações. Retiro a mistura E de bênçãos me cumulo. De dia, rainha do lar. De noite, princesa. Vendo minha progenitura Pelos braços do eleito, Após a novela, A Eva das oito. Faço-me Rapunzel No dia a dia, Nesta torre de Babel Sou Penélope paciente Curada ou doente, Sou Raquel de Jacó, Nos meus dias de Lia. Sou prudente Sou serpente E soro contra O que não mordeu, Trago o céu incrustado Por entre os dedos, Onde escorreu o veneno e, às vezes, o bom-senso. SÃ CONSCIÊNCIA - Stella Tavares. Sou quase uma mulher de meia idade, muito embora ninguém nunca tenha dito de quantos anos é feito uma idade inteira. Uma mulher que deflora o tempo, divide ao meio, transita por suas infinitas passagens e que aprendeu a extrair o seu poder anestésico e cicatrizante. Manuseio o tempo, mantenho-o em lugar seco, arejado, e o sorvo em forma de alquimia. EU - Maria de Fátima Tavares. Serpenteei nas sombras e nos sóis ao encalço daquilo que me fizesse bem. No arrastar dos dias, intermináveis noites, a vida aflora, afora o vivido e o jogado fora. Sai-me bem, embora incauta e impura ao vislumbrar o resto. O que sobrou são sonhos no fim e no recomeço. Reconheço. Rescindo. Salpico. Saltito. Coço-me. E se me enrosco nas grenhas, perfaço as brenhas. Incuto-me. SEGREDO NÃO QUEBRADO - Antônio José Tavares. Queres saber quem eu sou? Eu nunca sou, eu sempre estou. Pergunte ao vento que sussurra Às estrelas, à lua Ao sol que descamba no horizonte À noite com seu negrume, Ao gaitear da cachoeira, Ao mistério das matas. Pergunte ao contador de histórias Nas praças, até mesmo à pequena flor À beira dos caminhos. Pergunte aos deuses e aos diabos. Às vezes sou manjar perfeito, Outras, migalha caída no prato, Sou sorriso, as lágrimas, o talvez. Sou o cristalino das águas do lago, Sou o lodo, o alagado. Então, pergunte-me apenas: Quem é ela? É a manhã raiada, o beijo molhado, o enigma decifrado. Assim saberá quem eu sou.

segunda-feira, julho 27, 2009

EMILY DICKINSON SOB A NÉVOA (*) Conto

Emily Dikinson nasceu em 1830, mesmo ano do nascimento de minha bisavó Archângela Lucinda do Espírito Santo, casada com Antônio José Tavares, ambos egressos da Província de Guimarães, Portugal, e moradores, no final do século 18, nos nos sertões de nossa Estiva. Emily também vivia nos sertões de Massachussets, no Povoado de Amhrest, EUA. Ambas, uma poeta e a outra fazendeira, teriam alguns pontos em comum? Creio que sim porque eu, descendente de uma, encontro-me tanto na outra, tantas vezes em tantas afinidades. Quem sabe sou uma das reencarnações dela? Quem me dera! Sinto-me feliz e a Deus agradecida por me dar, tanto tempo depois, tantos pontos em comum com a angelical poeta dos finos sentimentos e das reluzentes idéias. Ela autora, eu leitora, mas ambas vivenciadoras de partes por assim dizer idênticas do quinhão da poesia. Eu também não consigo desfazer-me dos sinos cujos toques suavizam os caminhos. Os sinos dela eram seus escritos e guardados: 1.775 poemas encontrados por sua irmã Lavínia. E meus sinos? Ouço-lhes os timbres, a ressonância, mas não sei reproduzir os sons, como ela sabia. Mal-mal consigo silenciar os momentos para marcar os titubeantes passos aos sonoros repicados dos de nossa Igrejinha do Rosário. Eis o que de longe e resumidamente capto da ressonância dos dela: os séculos passaram, mas cada um deles é mais breve que a duração de um dia, de um dia que vi a cabeça dos cavalos a singrar a nossa eternidade. Quando aqui as cores do crepúsculo desaparecem, onde elas reaparecem? Em 1844, aos 14 anos de idade, ela sofreu um colapso nervoso ao saber da morte da melhor amiga, chamada Sofia Holland (imagine ó eu sempre ao lado dela, pelo menos no nome). Ela tinha uma irmã chamada Lavínia, que é o mesmo nome de minha irmã mais velha. Antes de falecer conheceu a poeta Helen Hunt, que tornou-se sua admiradora e editora póstuma. Morreu aos 54 anos, e parecia não ter mais que 30: nenhuma ruga, nenhum cabelo branco, a paz estampada na bela e cândida fronte. Sepultada sob a relva juncada de botões de ouro, violetas e gerânios silvestres. Era pequena como uma cambaxirra, tinha os cabelos como arestas do castanheiro e os olhos como o xerez que a visita deixa ficar no fundo da taça, segundo as palavras do crítico literário F.H. Higginson, em 15/05/1886. Fazendo aqui estas anotações, fico pensando no meu sentimento por José Antônio Tavares, também poeta sensitivo e inspirado. Não é uma outra coincidência em minha vida? Amo a poesia de Emily como ele ama a poesia em geral. A dela ele aprova, mas já leu apenas alguns fragmentos. Como é que pode um desencontro assim? O mundo é grande e pequeno de quando em vez, como se diz. Preciso com urgência emprestar meu livro dela a ele: quem sabe assim ele vai escrever até melhormente? Ele é muito ressabiado e comedido, imagine só: ele nunca deixou-me ler os poemas que escreveu depois que estamos a namorar. O que será que está dizendo de mim e como será que diz? Ou será que não represento nada pra ele, poeticamente? Nesse ponto a Emily é mais direta e sincera: cochicha aos meus ouvidos o que depois declama aos meus olhos fascinados. A natureza gosta de usar os belos adornos, como as moças – é o que ela disse do nosso querido e nunca assas amado Brasil, que ela conheceu de ouvir falar. O que poderia fazer com a noite diária para que ela recapitulasse indefinidamente o sonho perfeito que nem a nódoa da aurora consegue tingir? - Ela se pergunta na clausura de seu moderno Olimpo, - ela a noviça, a novata, a novíssima poeta Emily Dickinson. “Através da paciência consegui a Beatitude com a qual vou conseguindo preencher meu vazio, respirando sem você”, ela disse a um possível namorado platônico. Às vezes ela parece não ter razão, mas sempre tem. Quando ela diz a quem queria namorá-la: “a minha recusa faz de você uma pessoa mais feliz. Não sabe que a palavra NÃO é ambígua e desvairada?” Eu também sou muito assim temerosa, incipiente, desanimada. O sabiá é o jesuíta dos pomares, na minha opinião. A cobra é um pente sobre a grama. Isso foi ela que escreveu ou eu que pensei? A aranha a tecer golas de seda para as princesas da rainha, o rato é o malquisto inquilino, é o que penso, pensando que ela me cochicha. Enquanto isso acontece, a minha bisavó Archângela, dona da antiga casa da Fazenda Nova de nossa bela e querida Estiva, ou a própria Emily da bucólica Amhrest varre as nuvens da terra para o céu nosso de todo santo dia. A poesia dela é de uma beleza que faz sorrir, de um sorrir que faz chorar. No dia em que o musgo alcançar nossos lábios e encobrir nossos nomes na campa (assim ela dizia). Nesse dia (eu acrescento ou é ela ainda que fala?) o espaço será informe e vazio, como antes da Criação. Assim será a não-vida no não-mundo, sem a múltipla e unitária presença da Verdade e da Beleza. Para desfazer o vazio (agora a voz é plenamente dela), ponha de volta o que o causou. É inútil cobri-lo com outra coisa. Mais vazio ele ficará, pois como seria possível soldar o abismo com o ar? Ela morreu (e como se ela mesmo dissesse de sua morte) e foi assim: quando sumiu-lhe a respiração, ela tomou seu modesto enxoval e partiu para o sol. E como uma criança, ela faz seu apelo ao Pai do Céu: “Papai do céu, olha o rato sujigado pelo gato! Papai do céu, reserva em teu reino uma morada pra ele! Uma boa instalação, uma seráfica dispensa, onde ele possa mordiscar o dia inteiro o queijo mais corado e caprichado. Enquanto por outro lado, sem de nada suspeitar, os Ciclos passam, solenes, a girar a girar! 

(*) fragmento não aproveitado do romance inédito O PIÃO ENTROU NA RODA.

OBSCURIDADE ONÍRICA

De repente estava vagabundeando numa terra bonita, de gente feia (os carecas psicopatas, os barrigudos corruptos, os barbudos trapaceiros, os vendilhões da moral e dos bons costumes, os bandidos risonhos e toda a cambada de usurpadores do erário público, os matadores biliosos, os capachos histriônicos), sem saber o que fazer dos olhos, das mãos e das pernas. Perdido e mal pago, cocei a cabeça rígida, entrei na viatura do carroceiro desabusado, que fica o tempo todo conversando com o cavalo, em voz alta (o animal seria surdo?). Não sabia para onde me levava, fiquei receoso de nova intromissão em searas abjetas. Assim, mais que depressa, pedi para parar a fim de que descesse da imunda carroça, depois de saldar o estipêndio do maluco carroceiro. Vi-me então num local rebuscado, no alinhamento das vistosas construções de cimento armado e floreado. A vista geral era a de um parque temático de uma ONG de administração terceirizada. A área construída sumia de vista, abrigando ruas e mais ruas engalanadas nas trepadeiras vegetais sobre as colunas e coberturas de cimento armado em ferro e aço. O piso de calçamento paralepipédico religiosamente nivelado. Todos os lados abrindo-se em leques longitudinais de iguais extensões dos quatro lados, geometricamente desenhados em curvas e retas representando aqui, ali e acolá réplicas de ícones da história da civilização: castelos, palácios, estátuas, igrejas, catedrais, chafarizes, arcos e colunas, pirâmides e piscinas, jardins e gangorras – tudo a desenrolar-se na infinita fluência de cada uma das vias dos quadrantes. Não se via, no entanto, uma edificação sequer destinada às funções residenciais, dando a entender que ali não morava ninguém, que as pessoas que andavam de um lado para outro eram turistas boquiabertos, fantasmas da contingência recreativa, autômatos como os rinocerontes de Ionesco, vestidos de seda e algodão, revestidos de basófia e presunção. À certa altura das passarelas ajardinadas, estaquei, apalermado, a perguntar-me a causa e o efeito de tanto farol exibicionista. O diabo é muito fino, pensei. Talvez desconheça o poder dos políticos brasileiros. Ah, sei também que a morte pisa com igual pé na barriga do pobre e do rico – e que o arminho prefere morre a se sujar, o que, igualmente é da natureza das mulheres nas retas e curvas do idealismo romântico. O vidro quebra e não solda, não é mesmo? E no meio da ostentação, logo aparece a confusão dos pagamentos das despesas com dinheiro sujo e frio, as falências e demências, a areia no lugar do açúcar, tudo isso depois dos desafetos e dos desaforos entre os vendedores e compradores das ações em torno dos falsos moedeiros. Deus não é uma padronização, não é onipotente – alguém diz, assoando o nariz. O tapado, que não enxerga um palmo adiante do nariz, é o amante ideal da mulher ciumenta: ele nada vê além dela, em tudo que olha. O insatisfatório e petulante cronista das fanfarras arrivistas não dá um vintém pelas relíquias reais nem pelas réplicas, ali no parque, da estatuária egípcia do tempo de Ramsés II, rei dos reis, que viveu entre os anos de 1289 e 1224 antes de Cristo. Teve oito esposas, entre as quais duas filhas, uma das irmãs e a preferida Nefertari. Naquele tempo a morte não era um fim, mas, sim, um meio, o meio da existência. O corpo humano continha, além das forças físicas e anímicas, a força divina – e toda a prova da vida era preservada pela mumificação do suporte material e o embalçamento das vísceras. Assim estava escrito no ar das adjacências das remotas homenagens a um período luminoso da civilização. Interessante, mas não me interessava, naquele dia aziago. Na canseira das intermitências, desvencilhei-me num átimo e logo estava numa rua paralela, de muros altos e sem edificações habitacionais. As distâncias alongavam-se, desertas, à esquerda e à direita. Na dúvida nem sei qual delas preferi. Comecei andar, sem saber para onde ia e logo deparei-me com pessoas estranhas, ao mesmo tempo aniquiladas e arteiras. Miudei os passos, fechei as feições, disposto a não dar atenção nem travar contato verbal com quem quer que fosse. Mas não conseguia evitar a visão atrapalhada dos homens rombudos e magrelos e das mulheres fugidias e sorridentes. Uma delas andava na minha frente, rebolando. Achei lindo e, ao alcançá-la, constatei, contrafeito, que o rosto dela era outra parte traseira, de nádegas redondas e macias, um implante de rosto com duas faces e a boca, mas sem o nariz e sem os olhos. Na estranheza, senti que estava era delirando oniricamente, quem sabe com a própria morte, ali perto, numa daquelas aléias de um cemitério de pessoas vivas e nuas e silenciosas. Aflito e tentando acordar. Tentando sem conseguir. Dormindo fiquei, dormindo estou. O que vai acontecer, quando acordar?

A QUARTA DE FUBÁ – Conto

Norvina, cadê o Zé Juca? – Pergunta o Moinho nas vinte e quatro horas do dia-e-noite do relógio despertador. E o Monjolo responde: - Tá no munho! A audição do diálogo da água com a madeira alcança as vivendas da vizinhança, a lembrar que o sítio do Zé Juca produz fubá, farelo e farinha de milho, a granel, para vender e trocar. O Zé Juca é um sonhador em atividade, nas cercanias do Arraial, que aprecia o bom paladar das coisas, dos alimentos, dos fazeres e das palavras. Não subestima nem estorva a liberdade e a felicidade dos vegetais – e até mesmo costuma perguntar a quem dele discorda: quando que um ramo de alecrim ou mesmo o espinho do esporão salta da moita para barrar o nosso caminho ou agredir-nos nas munhecas? Entretanto, noutros pormenores era intransigente: em se tratando de negócios, com ele é assim: vem à nós tudo; ao vosso reino, nada. Seu compadre lá dos Narcisos vem comprar dele uma quarta de fubá e não desmente, mais uma vez, a fama de chorão e de pechinchador. Depois de afirmar que anda ruim das pernas e da cabeça e que não sabe como consegue tratar de sua família tão grande num terreno tão exíguo como o que tem, lá nos Narcisos. “Será que todos de minha família” – ele se queixa, interpretando a tônica da amargura pessoal - “são sempre os mesmos que, uma vez nascidos, terão que sofrer até morrer, e que assim continuarão até à consumação dos séculos?” - Qual o quê! – Ameniza o Zé Juca, medindo o fubá na enorme vasilha de madeira. “Você está chorando de barriga cheia. Não tem medo de Deus castigar?” Ao ouvir o que o vendedor dizia, o comprador nota a fofura do fubá perfazendo uma quantidade bem menor, se estivesse apesoado. E lá do fundo de sua contumaz astúcia roceira, começa a contar um caso. - Ah, compadre, não digo nada. Preparei uma terra de arroz lá nas Itapecericas, que ficou supimpa, só vendo. Deu muito trabalho para esgotar o pedaço do brejo e destocar o chão, mas agora só vendo a beleza que está: uma gema de cultura numa daquelas vazantes do rio. A terra é úmida, mas fica deslinguenta quando enxuga, fica igualzinho a esse fubá... Vai dar até para plantar feijão solteiro, do tempo, na seca. - Conheço o lugar, - responde o Zé Juca. “A gleba é dos filhos do Isaltino, não é? Está plantando à meia ou à terça?” - A colheita do primeiro ano vai ser só minha, do segundo ano em diante vai ser à meia. - Mas aquele terreno, até nas cabeceiras, não está no rol de demandas dos filhos do Isaltino com o Sô Azevedo? - Está. - Então se o Azevedo ganhar, você perde o trabalho. - Toda demanda leva tempo. Até chegar lá, já terei colhido a produção da roça. - O tal de Azevedo é danado, do olho limpo. Sabe que ele comprou, a preço de banana, o Pasto da Lobeira, com as roças e a capoeira da Fontinha e tudo mais, de porteira fechada, da Dona Braulina? - É compadre, mas sem mudar de assunto, o que eu estava dizendo da terra que destoquei é que apareceu por lá uma baita duma capivara (faz o gesto do braço levantado em relação ao piso do moinho, para exemplificar o tamanho da capivara). - E você tem visto a bitela nas imediações? - Não, mas julgo o tamanho dela pelos rastros que ela deixa na terra afofada. Olha só como são os rastros dela. Aí o roceiro dos Narcisos, chamado Antônio Maria, apóia a palma da mão direita sobre a superfície do fubá afofado e diz: “Julgo que ela deve pesar umas duas arroubas. Julgo pelos rastros dela, que são mais ou menos assim (e assim dizendo, ele calca o fubá no vasilhame, até compactá-lo em toda uma superfície, agora de nível mais abaixado. Mas o Zé Juca, que de bobo não tem nada, percebe a artimanha e dá corda às próprias habilidades arremedadeiras, para replicar). - Uma capivara das baitas, puxa! Não seria uma paca? Tem que ficar de tocaia, com a arma de fogo. Se quiser, empresto a chumbeira, com o trato de depois trazer-me um bom naco do lombo dela. Capivara com feijão mulatinho e farinha de mandiocas e couve rasgada, é de lamber os beiços, não é compadre? Os farrapos de nuvens molham os mandiocais. O cavalo morto já está no papo dos urubus? Valerá a pena comprar o barrote do Sandomir? E buscar nos olhos da Anabela a sombra do amor? Mas o que tem a ver a capivara com a sovinice dos compadres? O Zé Juca continua na dúvida do sobreaviso. Já entendeu aonde o compadre quer chegar com a estória da capivara, que é o ser mais confiado dos terrenos alagadiços. É mais uma de suas arapucas, que ele me arma, o safado. O jeito, pois, é contra-atacar. - Aqui em casa a Norvina cismou de plantar uma horta de couve. A coitada pelejou um bom par de luas, mas a horta até hoje não quer vingar. Ela até que fez tudo direitinho, escolheu uma nesga de terra escura, ao lado esquerdo da casa, onde os filhos, quando eram pequenos, costumavam cagar e mijar. Ela cercou os canteiros com pedras arredondadas, de forma que até ficou bonito. Estercou com bosta seca de gado, curtida, deitou as mudas e sementes, aguou, aguou, mas até hoje nada, nada da horta prosperar. - Não entendo porque, compadre. Se ela fez tudo direitinho... - Só porque ela não misturou o esterco na terra, só por isso. Não misturou nem revolveu uma coisa com a outra até bem fundo antes de plantar. O que ela tinha de fazer era isso (e dizendo lança as mãos no conteúdo da quarta de fubá, e esgaravata da superfície até onde os dedos alcançam, assim afofando inteiramente o produto na medida, até que o mesmo suba ao nível anterior ao calcamento astucioso do compadre). Momentos depois, subindo o Morro do Esbarrancado, com o saco de fubá nas costas e a capanga de laranjas num dos braços, o Antônio Maria sacudia a cabeça, pensando que no sítio do Zé Juca até os mortos devem capinar as roças e bater os pastos, pois que eles não comem nem bebem, nem dão outras despesas. Ele é o compadre que fuma no escuro o cigarro apagado, não dá nem bom dia de graça e não come a banana para não ter que jogar a casca fora. - A coisa é feia! – Alguém grita na rabeira do eito da roça de milho do Zé Camilo. - É feia, mas é boa! – responde quem está capinando na dianteira do sitio. Tem gente que não dá sossego à própria sombra – pensa o comprador de fubá, todo suado no caminho de casa, a procurar um toco ou uma pedra na sombra da estrada para descansar um pouco seu futuro cadáver.

segunda-feira, julho 20, 2009

LENDO, LINDO, LENDO

Deixando de lado o antigo rancor das coisas inanimadas: a feiúra, a empáfia, a vileza e a mentira, o escritor Amós Oz, no delicioso livrinho “Rimas da Vida e da Morte” esbanja poesia na prosa, faz da noite descansativa a renovação de cada dia exaustivo. Entre o homem e a mulher, entre suas perguntas e respostas, brilha fugazmente uma alma extra? As visões disparatadas na multiplicidade dos lugares reconstituem na lembrança da coletividade a seletiva individualidade. Cada pessoa é diferente da outra, cada uma portando seus problemas e soluções, suas vivências e fantasias, suas propensões adesivas e repulsivas. As vidas nunca são iguais, as pessoas são diferentes, os atos e as idéias atropelam-se nas casas e nas ruas – e não há papel que chega para comportar tanta escritura. Cada pessoa carrega mil estórias (vividas e a viver) para contar. E o que a literatura tem a ver com a gente e com os lugares? Piora para melhorar ou melhora para piorar? Ou copia fielmente caindo na área da reportagem jornalística ou na da história científica? Na trama de Amos Oz o homem de meia-idade reparte sua solidão com a solidão da moça esquiva e introvertida que se dá ao trabalho de preencher artificialmente o sutiã. Palavras e olhares, toques físicos mínimos – e logo a eletricidade amorosa acende as tímidas luzes das escadas, corredores e íntimas dependências do edifício residencial das pessoas mais solitárias da cidade. Conversa vai e conversa vem, ela retraída e reticente, ele retraído e reticente, aos poucos se deixam pronunciar as piscadelas eróticas, soterrando na consciência dele as mortes esquecidas e as lembradas de seu lamentável passado. Subitamente o desejo de vê-la fazer xixi de pé toma conta dele – e assim, vagarosamente, a vida e a morte perdem a importância na história que agora se contorce. E assim ele de repente se delicia ao sentir os arrepios em declive das costas dela, as ondas do mar na pele dela, a rigidez e a retração, o tecido mais fino do corpo do que o da camisola de seda dela. A lenta fricção que ia e vinha, todas as cores do arco-íris de seu desejo, as pétalas mais recônditas em volta da cereja dela, com os lábios e o veludo de sua língua, ela ressuscita nele o gosto de chupar o gosto do dia e da noite, recitando, implicitamente o verso “O essencial é viver”, de Carlos Drummond de Andrade. Depois ele se pergunta porque escreve contos e romances e poemas, sem saber responder. E assim está numa das páginas de um de seus livros: “O escritor, na adolescência, costumava se sentar sozinho numa dispensa abandonada e despejar no papel confusos trechos de histórias. Ele os escrevia mais ou menos da mesma maneira que sonhava e da mesma maneira que se masturbava: num torvelinho de coerção e entusiasmo, e desespero e náusea e infelicidade. E também tinha então uma infatigável curiosidade de tentar entender por que as pessoas o tempo todo infligem umas às outras, e a si mesmas, coisas que nunca tiveram a intenção de infligir”. Um “antídoto à opacidade do mundo?”, como afirma Paulo Geiger? Os amantes incautos e ineptos falam e ouvem por frases indiretas e pelas entrelinhas, cujos sentidos emborcam debaixo das palavras. O entendimento do diálogo fica para depois, quando será tarde para aproveitar suas significações. Assim vai perorando – e a certa altura da narrativa o escritor fala do dentista que sabia fazer da anestesia antes de arrancar um dente um objeto de matar o paciente sem ser indiciado como assassínio. Na verdade, na verdade está bem escrito no Taanit: “Deus dispõe de muitos matadores”. Todos saímos da semente de Caim – o autor acrescenta na página cento e cinco. Abel morreu na juventude. Qualquer coisa no mundo, sem exceção, não representa somente a si mesma. Representa sempre a si mesma e mais outra coisa – assim o autor assegura, acrescentando o que disse sobre a preferência de Deus por Caim em vez de Abel. Aquele que escreve o poema e você, a pessoa que sofre, não devem ser a mesma pessoa, mas sim, duas pessoas – assim ele ensinaria ao jovem poeta. De minha parte, na distância da feérica deambulação das publicações, lançamentos, palestras, contatos com celebridades, preocupação com direitos autorais, etc, humildemente recomendo a quem me consulta sobre como escrever poesia, conto, romance, que antes de mais nada é preciso ler os bons autores de poesia, de conto e de romance. Não para escrever igualmente, mas para superar, para escrever melhor, se for possível. A possibilidade é bem remota, mas o desafio é valioso. Uma nova obra literária só vale se for realmente nova e não uma repetição cansativa de inúmeras outras. E acrescento: antes de se dispor a escreve e depois ou enquanto ler é preciso viver, viver sim, manter seus vínculos com a realidade ambiental: prezar os parentes e amigos e conhecidos e desconhecidos, trabalhar e conviver normalmente, comer, dormir, namorar, passear, ou seja: dialogar sempre e monologar só de vez em quando. Se não proceder assim, pode se dar mal e entrar em parafuso, como se diz. E em vez da obra literária vem a frustração, que é um dos piores martírios dos sonhadores e das pessoas bem intencionadas.

sábado, julho 18, 2009

A CONSCIÊNCIA ECOLÓGICA (*)

A Humanidade? A humanidade é uma porcaria perigosa que dizima tudo em torno de si mesma. A Natureza? A natureza não pergunta de onde você vem, nem qual religião professa. Foi ela que uma vez salvou-me do suicídio. Por que os brasileiros destroem as florestas? Gostam de ver um mínimo pedaço de carvão onde antes esplendia uma pitangueira? Sou sim um revoltado, não aceito a luta do homem contra o homem. Nem mesmo consigo viver com outra pessoa além de um, dois, três meses. Nada no mundo é pior do que a vida urbana, onde ligamos a televisão para saber das coisas, para destemperar ainda mais a nossa existência. O ambiente artístico é medíocre, provinciano. Como é ser um artista brasileiro? Como é? É viver sem diálogo, incompreendido, na solidão? O Brasil não foi descoberto, sei que foi invadido. Sei que aqui existia um povo que a invasão desbaratou e extinguiu. Jamais serei feliz aqui, aqui ou em qualquer outra parte do mundo. Só vejo em toda parte a destruição da natureza aumentar e aumentar... A natureza que é a força da vida. 

 (*) Escrito depois de ler a reportagem de Mário Sergio Conti, “Entrevistas Históricas”, no Caderno “mais!” da Folha de São Paulo de 10/02/2002, sobre alguns pontos de vista do escultor polonês Franz Krajcberg, naturalizado brasileiro desde 1950, que então vivia numa casa em cima de uma árvore num mangue de Nova Viçosa, litoral do sul do estado da Bahia.

quinta-feira, julho 16, 2009

PROFISSÃO DE FÉ

Apanho as canções jogadas em toda parte, não sei por quem (por Vincent Minnelli nos cantantes filmes que fez com Judy Garland?). Apanho humildemente. Encho os bolsos de gabirobas, os olhos de paixões, a boca de beijos femininos, as mãos de saudações e adeuses.

A LEMBRANÇA DE WILHEIM REICH

Quando se chega ao cerrado ou à floresta, o que se vê mais depressa é a disseminação da libido em todos os sentidos, a ausência das neuroses e das fisionomias cansadas nos seres e nas coisas. Nenhuma árvore sofre a taxa de juros, nenhum animal remói alguma culpa - é o próprio amor a céu aberto: no ar, nos galhos, nas folhas, nos troncos, no chão, nas relvas. Os vegetais em lento sussurro verde, os paus vivos digerindo o sal da terra, o doce do ar e o que mais de bom houver. As folhas abertas como flores, as pacas e capivaras e os sanhaços, todos e tudo glorificam a função do orgasmo universal.

PARÁFRASE DE UM POEMA DE JILL HOFFMAN

É no sonho que ouço o chamado (o grito simbólico de meu nome). Num instante pulo da cama em silêncio, para não acordar o marido que ressona. Encontro o chamador no quarto contíguo. E agarrados formamos outro casal na escassa luz da madrugada. Sua boca voraz me esvazia e me enche. Como é bom ficarmos assim na cama, o longo tempo a brilhar nos espaços. As gotas de leite escorrem no seu rosto, o meu corpo boceja e flui na entrega. Novamente a dormir no paraíso (na área vívida das pétalas momentâneas), ele já dispensa minha companhia. Então levanto-me diante da outra porta, retorno ao meu ninho anterior, para reaquecer-me no corpo de meu outro homem, acordado, mesmo dormindo.

AGOURO

O deserto é a morte em figura de gelo e de areia. De longe me espreita, ameaçador. Acaba de dar dois passos na minha direção? Vai esturricar-me ao sol mais próximo? Enregelar-me ao frio mais longe? Sei que o gelo (mesmo sendo uma das mortes) vai morrer primeiro (e não por suicídio). A areia, mais potente, vem ocupando o espaço da relva. Vem aproximando da vida fértil, com as foices faiscantes da esterelização. A sola de meus pés já sentem o calor da consumição. Está morta a égua, diz o capiau da roça, abismado no corredor dos novos dispositivos mortais. Doa em quem doer. É assim mesmo que caminha a humanidade aos trancos e barrancos.

MONALISA NOVAMENTE VEIO À TERRA (*)

Anos e anos de sorrisos discretos e prazerosos. Alguns como respostas, outros com provocações, quase todos oriundos da predisposição de amar. O seu amor (pelo menos ele, neste mundo) alteia o fluxo das novas ondas, alivia a tensão dos alheios ferrões. Que pelo menos ele, neste mundo, seja a promessa que não se cumpre e não obstante se renova, de tal maneira que mesmo ilhado em abismos, é talvez o único dos amores conhecidos que semeia e colhe e alimenta a felicidade. À noite no jardim, ao abanar as mãos, ela agita as rosas do próprio corpo. Depois, na casa das chuvas musicais, ela oferecia um dos seios, ao inclinar-se? Oferecia, mesmo sabendo de minha inaptidão para acolher a imerecida ventura? 

(*) Paráfrase de uma velha canção.

quinta-feira, julho 09, 2009

DENTRO DOS HORIZONTES

A cidade “apresenta em seus principais lineamentos topográficos a bela forma de um vasto anfiteatro aberto para o Oriente, como que para receber desde cedo os benéficos raios solares, e, encostando-se ao Sul, a Serra do Curral que a protege contra os ventos frios e úmidos que nessa direção atravessam as serras de Ouro Branco e da Moeda”. - Aarão Reis, em 1893. O belo e eqüidistante horizonte do recital das vozes líricas. O sinuoso curral dos épicos embates na redondidade hospitaleira da vivacidade. As contraditórias estórias das igrejas e cabarés (as mãos postas aqui, os pés serelepes ali). Os dias compridos da Avenida Afonso Pena sob a bênção contemplativa da Igreja São José. As noite curtas da Rua dos Guaicurus (o cabaré Magnífico de um lado, o cabaré Maravilhoso do outro lado): as mulheres substituindo as moças para os moços afoitos. A uberdade sólida de um passado recente. A deformação insólita de um futuro galopante. Foi fácil para o poeta Mário de Andrade ver aqui o céu aberto através dos pincéis de macaúbas. Praça da Estação Ferroviária O chefe do trem recolhia as passagens, a repetir: “Belo! Belo! Belo Horizonte!” Eu sofreava a cogitação, fechava os olhos nas curvas, enquanto as casas passavam, iluminadas: nunca tinha visto tamanho prodígio! As rodas do trem de ferro arrancavam faíscas nos trilhos, rilhavam nas curvas do Calafate e da Gameleira. Eu via os arcos e as flechas de pedras caiadas, as faces dos bichos selvagens da modernidade. A praça da estação ferroviária abarcava agora o estacionamento dos automóveis. Eu via e revia as luzes no chão de vidro negro, o espelho remoto de um céu noturno. Assim a cidade nua estampava num átimo o cenário de um filme policial de Humphrey Bogart, bem ali de repente aos olhos atônitos do menino roceiro que chegava à cidade grande, tecendo em si as novas perplexidades palpitantes dos dias seguintes. Avenida Afonso Pena O transcorrer das pessoas diferenciadas em suas pernas sensuais, em suas cabeças mentais. O corredor das atividades sob a luz diuturna das necessidades. O céu que se abaixa no Horto e que se eleva na Gameleira e no Calafate... A vívida expressão de interesse pelo que der e vier no trânsito dos momentos aproximados. Um caminho repleto de objetivos na mobilidade das pessoas blindadas sob a luz das necessidades, nos pontos obscuros das transigências, como numa tomada panorâmica de um filme de Helvécio Ratton. Praça Sete de Setembro Foi nela que um dia o conterrâneo afobado deixou escapar do carrinho de entregas o lote das galinhas apavoradas. Pobre dele: da dúzia de penosas só recuperou meia-dúzia, e o valor das outras foi descontado de seu salário. A praça continuou perfeita e graciosa, com seus dias de outras eras, de outras terras: sintomática na folgança domingueira, a evocar contos passadistas e futuristas? A explicar os bosques sagrados de tempos remotos? Lembro-me agora de Enéias encalhado nas costas da Líbia, a rever, sim a rever as cenas do filme da refrega greco-troiana.... (por que será, que me vem agora tal lembrança tão fora do contexto? O Pirulito em concreto armado (obra de arte do saudoso Antônio Gonçalves Gravatá) é um ponto de exclamação dentro dos horizontes de um poema hermético? Praça Raul Soares A manhã radiosa e a tarde merencórea. A sutileza dos segredos mantidos nos bolsos corporais dos pares enamorados... As células corporais em evidência, assim como a flora jardineira dos canteiros (reduzidos quintais de uma infância roceira?). A circularidade dos aspectos mais notáveis na aclimatação das circunstâncias e dos semblantes. As sentidas doçuras nubladas nas lembranças. As lonjuras aproximam-se, de repente. Parque Municipal Quem estiver prestes a desistir dos maduros intentos, a sentir o chão espinhoso sob o reles céu cotidiano, a sofrer a falência dos sentidos mais ativos, que dê um pulo ao Parque Municipal, que percorra as alamedas da educação física - e assim defenestre a incoerência momentânea - e assim sinta, apolíneo, narcísico e peripatético o bom sentido da vida a brilhar nas folhas do chão, na brisa do ar, na caminhada a favor das articulações, na límpida toalha do céu propício. Ali é onde e quando o filho mórbido do contratempo encontra o mote da oralidade e do coloquialismo na mesa redonda da redenção metafísica, que nos ensina que se perdermos a libido, perderemos a graça de viver. É assim que o corpo humano empertiga e o mundo recomeça a girar, bem no coração da cidade.... Praça da Liberdade Como se estivesse vendo pela primeira vez, mais uma das muitas vezes, meu sequioso olhar não se contém nos circulares imóveis desdobrados. Sei que as pessoas que procuram a plenitude encontram a esteira de outras luzes: o verde fugindo entre as rosas geométricas (como diria Carlos Drummond de Andrade) sob o renque das palmeiras imperiais. Os Bairros Telúricos Belo Horizonte é a circulação de nomes e de seres alpestres campestres rupestres silvestres: Prado, Calafate e Gameleira; Serra, Barreiro e Mangabeira. Horto, Barroca e Buritis. Pampulha, Floresta e Lagoinha. Belvedere, Cachoeirinha e Caiçara. Cada qual com a sua particularidade fisionômica, seu amor dos moradores, seus arranjos de ruas e casas com flores nas janelas (como os galãs com flores na lapela?). De um lado a sintonia dos monossílabos orais, do outro lado a arrumação das roupas no corpo e na alma. Os acidentes toponímicos, concatenados nas redondezas das captações visuais, têm lá seus brejos e córregos, morros e fontes, nascedouros e cemitérios, tudo para abrigar e aglutinar as etnias, os étimos e as etnologias dos adventícios das outras quinze bandas do velho mundo sem porteiras. Tudo no pólo mais precioso das minas gerais de tantas freguesias e primazias e sesmarias, dentro e diante de tantos belos horizontes “palpita em cada coração o pássaro da liberdade”, como lá diz a nossa bem amada poeta Henriqueta Lisboa.

segunda-feira, julho 06, 2009

OFERENDA DE VAN GOGH

Assim Van Gogh teria dito ao irmão Theo: O ruim da vida pode ser o bom e até o melhor. Sempre há um sabiá cantando na laranjeira em flor ou em fruta. Perder uma oportunidade e encontrar outra é só uma questão de tempo e de espaço. Até mesmo no dia (que não seja próximo) que perder a libido, - é ai, a partir deste execrável dia que você reencontrará a infância (já um tanto fora de propósito?:  Sim e não, não e sim, sim sim). Se não tem uma flor, um beijo, um suspiro, um poema para mandar a quem você ama, não se atordoe nem lastime: mande um lenço perfumado, um cacho de cabelos, uma orelha bem ereta: algo do elenco do melhor de si mesmo. Mande sua dor ou sua alegria em termos de amor para sua namorada, sua amiga, ou simplesmente sua conterrânea e contemporânea. Mande para alguém que mereça seu júbilo, seu fervor, seu afã de órfão, o troféu do amor mais refinado, o presente mais imponderável de seus cuidados.

sexta-feira, julho 03, 2009

A BRASA DA FOGUEIRA

A meninada do Arraial não perdia uma festa popular regada fartamente de chás, doces e quitandas. Eu participava da Turma da qual constava os amigos Remundo do Zequinha, o Nego da Fia, o Zózimo do Varisto e o Zezinho da Zica. Contumazes nas estrepolias, não poderíamos perder a Festa da Fogueira de São João na Fazenda do Lavapés, situada a uma légua do Arraial, naquele ditoso ano de 1945.. Chegamos pelas oito horas da noite com a festa já em andamento – e começamos a bisbilhotar as dependências do casarão, comendo e bebendo as iguarias servidas numa mesa imensa do alpendre, de onde apreciávamos as enormes labaredas da fogueira e os pares de jovens e adultos dançando sob o toldo de estacas de pau-pombo e a cobertura de folhas verdes de bananeiras. O som esfuziante e melodioso da sanfona do Joviano, e do violão, do cavaquinho e do pandeiro, respectivamente do Didico, do Idelson e do Jefinho, ecoava na região rural anoitecida da Noite de São João, considerada a mais longa do ano, sob o ar iluminado de estrelas no alto, de lampiões em estacas nas imediações e sobretudo pela enorme fogueira no centro do terreiro de chão batido. Chegada a hora dos sortilégios e do encantamento da Festa, à meia-noite, com a fogueira agora transformada em brasas vivas esparramadas no plano nivelado do terreiro, o pessoal começava a tirar os calçados para atravessar com os pés desnudos do imenso braseiro faiscante e vermelhíssimo. O primeiro a passar foi o tal de Isaltino – e ninguém importou, pois ele era considerado um feiticeiro de marca maior na região. Depois o filho dele e um apaniguado também passaram, ilesos e faceiros. Depois uma senhora idosa, fazendo o “pelo sinal da santa cruz”, também passou. Aí muitas pessoas tiravam os calçados, ameaçavam passar, iam até à beirada e recuavam. Eu nem cogitava de aventurar-me. Mas, quando vi o Remundo do Zequinha passar ileso e até sorridente, - ele que era meu exemplo de possibilidades vitais, ah, aí, senti um ímpeto estranho de inaudita coragem, tirei os sapatos e as meias e, sem titubear, passei de um só fôlego o diâmetro de três metros de fogo vivo do braseiro vermelhíssimo, chegando do outro lado com as brasas encastoadas na sola dos pés, sem o menor sinal de dor ou de queimadura. Palavra de honra que é a pura verdade. Hoje, passado tanto tempo, eu mesmo custo a crer na veracidade, mas o que estou a dizer é a pura verdade. Passei mesmo no imenso brasileiro crepitante, com os pés completamente despidos, naquela Noite de São João de 1945, quando contava meus saudosos onze anos de idade.

DANIELA FONSECA ENTREVISTA LÁZARO BARRETO SOBRE ADÉLIA PRADO

Pergunta: Há quantos anos o senhor conhece Adélia Prado? Resposta: Desde 1967, ano em que começamos publicar o jornal AGORA Literário. Ela colaborava no jornal da Paróquia de Santo Antônio, de nossa cidade, e o Frei Mariano (OFM) recomendou-me contatá-la para publicar no nosso jornal, que tinha ampla distribuição no país e no estrangeiro, devido aos endereços de órgãos literários e de renomados escritores que conseguimos na redação do Suplemento Literário do Minas, então dirigido por nosso amigo Murilo Rubião. Pergunta: Como é a sua relação com ela? Resposta: de muita amizade e admiração intelectual, de minha parte. Seu “Poema Com Absorvências No Totalmente Perplexas de Guimarães Rosa”, que foi publicado logo no primeiro número do nosso AGORA mereceu a atenção do próprio Guimarães Rosa (então vivendo no estrangeiro, se não me engano), que solicitou um exemplar do jornal através do seu irmão Vicente Guimarães. Na seqüência das publicações, ela participou de todas as edições, até a última, que ocorreu em julho de 1969. Depois fundamos, com o Frei Márcio (OFM) o Suplemento DIADORIM no jornal “A Semana”, em agosto de 1971, que circulou até outubro de 1973, no qual ela participou de todos os números com seus belos textos em prosa e verso. Sempre leitor e amigo dela e de toda sua família. Pergunta: em 1969 o senhor publicou em parceria com ela o livro “LAPINHA DE JESUS”, pela editora Vozes, de Petrópolis, RJ. 

Pergunta: Como nasceu a idéia de publicar o texto em parceria? Resposta: A idéia e o convite foram dela. Combinamos escrever, individualmente, textos em forma de legendas para cada foto do magnífico presépio criado por Frei Tiago (OFM). Depois selecionamos os que julgamos mais condizentes e expressivos. De forma que cada um participou com igual número de páginas, sem distinção de autorias nas mesmas. 

Pergunta: Como foi a experiência de publicar o livro em parceria com ela? Resposta: Foi ótima, instigante, incentivadora. 

Pergunta: Naquela época você imaginava que ela iria alcançar o sucesso que atingiu depois como escritora e poeta? Resposta: Sabia do potencial dela, da gama reservada de suas idéias e sentimentos. A religiosidade inata, por assim dizer, a influenciar e iluminar a humanidade de sua pessoa numa conjugação de matéria e espírito, algo dificilmente constatável nas pessoas, em geral. Uma poesia cobrindo o trânsito no espaço e no tempo. Beleza e verdade, verdade e beleza. 

Pergunta: Em sua opinião, qual a importância da obra dela no cenário de nossa nacionalidade? Resposta: A importância é ampla e bem diversificada. Principalmente em termos de referencial lingüístico feminino. Repare bem e sinta que a linguagem dela nasce, viceja e desabrocha no papel feminino de sua existência moral e física. Sabemos que ao longo do tempo a voz masculina é a que mais ecoava nos quadrantes territoriais do mundo inteiro. As mulheres, quando escreviam e publicavam seus textos não o faziam consoante à própria autenticidade biológica. Geralmente falavam e escreviam numa linguagem tradicional de origens, meios e fins especificamente masculinos. Com Adélia, Virginia Wollf, Marguerite Duras, Clarice Lispector, Olga Savary, Lélia Coelho Frota, Marly de Oliveira, Leila Miccolis e Ana Cristina Cezar, principalmente, o lado feminino da expressão literária começou a pontificar e influenciar as novas autoras.Assim é que finalmente a mulher está conquistando a própria linguagem num mundo em que os seres masculinos sempre mandaram e desmandaram politicamente. 

Pergunta: Tem algum livro dela, que é o seu preferido? Resposta: “Bagagem” é uma obra prima, assim como “Coração Disparado”, “Solte os Cachorros”..., ah, todos são assim prenhes e geradores de novas formas e novos conteúdos vitais, em prosa e verso. Sem a menor sombra de dúvida afirmo que ela é autora de uma obra que merece o Prêmio Nobel de Literatura. 

Pergunta: E se o senhor tivesse que definir a pessoa e a poeta Adélia Prado? Resposta: As pessoas não são rigorosamente definíveis. Sei, por exemplo, que o cotidiano misticismo dela é autêntico e relevante. É uma pessoa que está ao mesmo tempo na terra e no céu, ou seja, uma pessoa comum e incomum, se assim posso dizer. Uma dona de casa, uma amiga de toda gente, uma poeta inconfundível. 

Pergunta: Como entende a relação de religiosidade dela na literatura que ela produz? Resposta: Sabemos que falar de Deus é até muito fácil, todo mundo fala sem parar. É um tema que transige no circuito universal como uma espécie de âncora, uma salvação de conduta, uma esperança de misericórdia. Mas ela fala de Deus corajosamente, empregando a liberdade da aceitação dogmática e da réplica pessoal. Nada da tradicional docilidade do catecismo. Ela sabe incursionar pelos lados às vezes obscuros, íngremes, vertiginosos, procurando e encontrando luzes, afeições e conhecimentos. Fala de Deus numa linguagem viável, não clerical, muito pessoal, transbordante. 

 - Daniela Fonseca é Estudante de Jornalismo na Universidade Federal de Viçosa, Minas Gerais. - Fotos de Eduardo Simões, do livro “Caderno de Literatura Brasileira – ADÉLIA PRADO” – DO Instituto Moreira Sales, São Paulo, SP, Junho de 2000. 

Prezada Cibele, Diretora do Jornal MAGAZINE: Penso que para acentuar e valorizar a Entrevista é recomendável inserir no contexto as fotos das capas dos livros, assim como as fotos que mando em anexo, sem legendas, uma vez que falam por si mesmas. Seria também um bom e belo reforço se publicar também, em espaços apropriados do contexto os poemas do livro “Bagagem”, ou seja, os seguintes: IMPRESSIONISTA Uma ocasião, meu pai pintou a casa toda de alaranjado brilhante. Por muito tempo moramos numa casa, como ele mesmo dizia: constantemente amanhecendo. (Página 48 do livro “Bagagem”, Editora Imago, 1976, Rio de Janeiro, RJ). POEMA COM ABSORVÊNCIAS NO TOTALMENTE PERPLEXAS DE GUIMARÃES ROSA Ah, pois, no conforme miro e vejo, o por dentro de mim, segundo o consentir dos desarrazoados meus pensares, é o brabo cavalo em as ventas arfando se querendo ir. Permanecido apenas no ajuste das leis do bem viver comum, por causa de uma total garantia se faltando em quem m´as dê. Ad´formas que em tréguas assisto e assino e o todo exterior desta minha pessoa recomponho. Porém chega o só sinal mais leve de que aquilo ou isso é verdadeiro pra a reta eu alimpar com o meu brabo cavalo. Ara! que eu não nasci pra permanência desta duvidação, mas só pra o ser eu mesmo, o de todo mundo desigual, afirmador e conseqüentes, Riobaldo, o Tatarana. Ixi! (publicado no primeiro número do AGORA LITERÁRIO, em agosto de 1967). COMENDO PÊRA Tecida do que é feita polpa branca carne da minha carne feita agora. Imolada impassível na minha boca voraz. Sua cor, seu gosto e seu destino às paredes de minha fome localizada e implacável. Natureza morta. O que é uma pera? Nem estrela nem pedra. Carne branca. Polpa. Graça. Ausência de si. O dom. (publicado na edição número 1 do DIADORIM, em novembro de 1971). A BDL – Beira da Linha. “...Quem aprendesse andar, atravessava os dormentes, dava no botequim. O Lucrécio bebia, o Louro, irmão da Fia, bebia, o Edgar do Zé Romão bebia, o Edgar Preto, que suicidou horrível no teto baixo da cozinha, bebia, o Trombada bebia, O Jupira, que pôs placa de “casa familiar” na casa dele, bebia. A mulher dele bebia, o Bené bebia, o Zezé Moela bebia, a Vaca, pedideira de esmola, bebia, o Toezim, que tocava violão com perfeição desde os 12 anos de idade, bebia (...). Bebiam as locomotivas de farra com maquinistas e foguistas... Galinhas tontas morriam nos trilhos ( ) – uma parte da BDL é lembrança conservada em álcool”. 

Fragmento de texto publicado em 1977, num jornal cultural da Associação Atlética do Banco do Brasil – Divinópolis, MG.